cultura_circo_01.jpgO grande lema da trupe canadense Cirque du Soleil, o maior representante do chamado “novo circo” com 13 espetáculos ao redor do mundo e faturamento anual de US$ 600 milhões, é o seguinte: show perfeito é aquele em que não se nota o que está por trás das acrobacias e os seus possíveis erros. Essa é a tal da magia. Na quarta-feira 26, ISTOÉ teve acesso com exclusividade aos bastidores de Saltimbanco, o espetáculo do Cirque du Soleil que estréia na quinta-feira 3 a sua temporada paulistana de três meses – com os 240 mil ingressos, variando de R$ 100 a R$ 400, totalmente vendidos há meses. Em vez de entrar pelo portão principal da “cidade autonôma” azul e amarela, ISTOÉ teve o privilégio de entrar pelas portas dos fundos. Privilégio, porque é através dessa entrada, em meio à confusão de geradores, técnicos, restaurante, lavanderia e 51 saltimbancos ensaiando, que é possível ver aquilo que ninguém vê: os bastidores do melhor circo do planeta.

A chamada “tenda artística” é a combinação de camarim com sala de aquecimento dos músculos e nela reina a saudável confusão das trupes itinerantes tradicionais. Mas há uma diferença: o lugar está abastecido de internet de alta velocidade e aparelhos de ginástica de última geração. Num deles, a chinesinha Ren Jun, 17 anos, exercita-se no “step”. Assim como os outros artistas, ela vem de sete semanas de férias. Era o seu primeiro dia de treino, hora de deixar as pernas em forma para o número do Arame duplo, no qual se equilibra (inclusive de monociclo) em um fio de aço a uma altura de oito metros – e, claro, segurando uma sombrinha. Impossível conversar com Ren: ela não descola dos ouvidos os fones de seu tocador de mp3.

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Do lado, a russa Maria Markova, 22 anos, treina malabarismo com bolas de feltro. Basta um olhar para ela perder a concentração. Isso no ensaio, porque no show, mesmo sabendo que a multidão fica vidrada nela, Maria consegue manter suspensas oito bolas e, ao mesmo tempo, subir e descer uma escada. Além desses dois números, Saltimbanco traz mais dez atrações, todas animadas por música pop executada ao vivo e uma iluminação estonteante. Mastros chineses é executado por 24 artistas enfiados em malhas flamejantes, que entram no palco como répteis e escalam postes numa velocidade incrível. Um deles, o russo Dimitri Shilov, 24 anos, se mostrava surpreso com o inverno brasileiro que ia pelos 32 graus.

cultura_circo_03.jpgA profusão de araras com 600 figurinos faz do local uma mistura de brechó e academia. Mesmo assim, o húngaro Gergely Boi, 25 anos, acha sua malha com facilidade: das canecas às máscaras e adereços, tudo traz o nome do dono. Vestido de homem-aranha psicodélico, Gergely (apelidado de Gary para facilitar a pronúncia) reclama da barriga (imperceptível) causada pelos dois quilos adquiridos nas férias. “Eu pesava 83 quilos, estou com 85. Mas é só começar a turnê e em menos de uma semana volto à forma”, diz ele.

Excesso de calorias não é problema para os artistas, que só têm folga às segundas-feiras e fazem dez shows por semana ganhando um salário médio mensal de US$ 5 mil. Nutricionista, então, nem pensar. Para cuidar do corpo eles só contam com dois fisioterapeutas e um massagista. No restaurante do circo, comandado pelo chef holandês apelidado de Pim (ele não revela o nome), se come de tudo. O cardápio da quarta-feira, por exemplo, incluía massa, frango e porco ao curry. “Os russos e os asiáticos preferem pratos orientais, mas ninguém gosta de comer a mesma coisa. Tenho de variar”, diz Pim. Como é tradição no circo, ele sempre prepara um prato típico do país em que estão. No Brasil não deu outra: foi escolhida a feijoada, a ser feita com a ajuda dos cinco brasileiros contratados para a cozinha.

cultura_circo_05.jpgA mistura de nacionalidades e culturas é uma das marcas do Cirque, como explica Lyn Heward, que escreveu o livro Cirque du Soleil – a reinvenção do espetáculo (Editora Campus/Elsevier). Nele, a autora conta sua experiência na divisão de conteúdo da trupe. “Nos shows, nós juntamos culturas, disciplinas, personalidades, histórias e músicas de diversas procedências. Isso vale também para o dia-a-dia da companhia”, diz ela. Em Mastros chineses, por exemplo, foram reunidos acrobatas de dez países diferentes. No ensaio, antes de se aventurar na escalada, eles passam um líquido especial na sapatilha para facilitar a aderência. A receita é dada, mas não por completo: álcool, resina e “outros ingredientes”. Em alguns movimentos mais arriscados, os rapazes fazem uso de um finíssimo cabo-de-aço que é afixado na cintura e controlado do chão, ao lado de uma das torres que sustentam a tenda, pelo técnico canadense Warren Conley. No espetáculo de São Paulo, os cabos são usados também no número da chinesa Ren Jun, quando ela se equilibra no arame com o monociclo – é por isso que se dispensam as antigas redes dos circos mambembes. Como essa função é uma das mais antigas do Cirque (estreou em 1992 e deve ser excluída do programa depois da turnê brasileira), a utilização de recursos mais modernos é ainda tímida. Mas na exibição chamada Kà, no Casino MGM Grand, em Las Vegas, a utilização de cabos chegou a uma sofisticação hollywoodiana.

cultura_circo_06.jpgQuem conta é o paulista Nildo Siqueira, 26 anos, especialista em trapézio e acrobacia, um dos 31 brasileiros contratados pela companhia canadense: “Em tudo é computadorizado, a gente usa um controle remoto manual para acionar os cabos.” Outro brasileiro, o capoeirista mineiro Kleber Berto, 23 anos, revela outros truques do Cirque: “Usamos também um fone de ouvido. Se acontecer qualquer problema, a gente é avisada a tempo.” Além de , o show mais caro da companhia (custou US$ 165 milhões, cinco a mais que o filme Poseidon), o Cirque du Soleil tem mais quatro espetáculos em Las Vegas. O mais recente, Love, é feito sobre canções dos The Beatles, a primeira vez que suas músicas foram cedidas para uma produção. Conseguir isso mostra o poder de fogo da companhia que transformou o seu criador, o canadense Guy Laliberté, 46 anos, numa das maiores fortunas do mundo, com um patrimônio pessoal de US$ 1,4 bilhão. Ex-engolidor de fogo, tocador de acordeon e artista de rua, Laliberté passou por maus pedaços ao criar o Cirque em 1984. Numa das primeiras apresentações, por exemplo, a tenda veio abaixo e machucou diversas pessoas. Hoje, conta com engenheiros e calculistas que chegam ao exagero de conseguir uma inclinação de 1% no asfalto para melhorar a visão do palco.

“O sucesso do Cirque du Soleil começa pelo chão. Não vejo a menor graça, por exemplo, se o público molhar os pés em poças d’água. Tudo tem que ser muito confortável”, diz o engenheiro canadense Paul Grenier, supervisor de construção. Um dos próximos projetos de Laliberté é enfeitar as músicas de Elvis Presley com os fantásticos vôos e a alegria visual que já virou grife do Cirque du Soleil. O seu outro sonho é fazer uma viagem espacial, coisa que ele e a sua companhia já fazem há tempos através da arte.

cultura_circo_04.jpgUS$ 1,4 bilhão é a fortuna de Guy Laliberté, fundador do circo, que emprega 3.500 pessoas de 40 países

50 milhões de pessoas viram os 13 shows da trupe em
90 cidades do mundo num total de 240 temporadas