Da janela de seu apartamento, no centro
de São Paulo, o cineasta Sérgio Bianchi
assistiu a uma briga inusitada: voluntários
de duas instituições disputavam com suas kombis o espaço para servir quentinhas a mendigos. Foi o lampejo para o seu novo
filme, Quanto vale ou é por quilo? (Brasil,
2005), estréia nacional na sexta-feira 20.
Com a mesma virulência e coragem de Cronicamente inviável, o cineasta paranaense investe agora contra o que chama de “crime da caridade”, ou seja, a atuação de entidades filantrópicas que, segundo ele, tratam a miséria como mercadoria. A história se passa na São Paulo de hoje, quando uma empresa de fachada assistencial, a Stiner, usa seu projeto de “inclusão digital” para superfaturar a compra de computadores para a periferia. Paralelamente, o filme acompanha a trajetória de um jovem que vira matador de aluguel e de um bandido que planeja o seqüestro do diretor da suposta ONG. Tudo isso justaposto a sugestivas crônicas de episódios passados no final da escravidão. Na entrevista a seguir, Bianchi – retratado por Marcelo Soler em Sergio Bianchi em palavras, imagens e provocações (Editora Garçoni, 144 págs., R$ 24,90) – esclarece pontos do filme.

ISTOÉ – Poderia explicar melhor a transformação da miséria em mercadoria, que se traduziria na atuação das ONGs?
Sergio Bianchi –
Eu não uso a palavra ONG. São associações do terceiro setor. Conheço várias, algumas pequeníssimas, que conseguem muito pouco, e estruturalmente, em termos de mercado, só têm uma kombi, pegam uma pequena verba. Nessa situação de miséria exposta é impossível pressionar o Estado porque ele não tem mais obrigatoriedade. Então passa para a sociedade civil e por meio dessa situação criou-se um mercado.

ISTOÉ – Mas existem entidades que trabalham sério…
Bianchi –
Será que existem? Não sei, não fiz pesquisa. Mas pouco importam
as boas intenções e a lisura da coisa. O ato de faturar em cima da miséria
para mim é imoral.

ISTOÉ – Em que sentido essas entidades do terceiro setor reproduzem a mentalidade escravocrata?
Bianchi
– Hoje o sistema é assim. São várias firmas, associações, bancos e várias “classes médias” que montam pequenas associações para cuidar dos destituídos. O governo lança, em termos populistas, movimentos para resolver o problema. Eu pergunto: resolver o problema ou o problema vai continuar existindo para manter essa estrutura burguesa, vamos dizer, ou de classe média?

ISTOÉ – Através do bandido economista, vivido pelo Lázaro Ramos, você coloca o seqüestro como uma forma de redistribuição de renda…
Bianchi –
Ele coloca, não eu. Eu não defendo o seqüestro. Ele é quem teoriza isso, como personagem.

ISTOÉ – Caetano Veloso chamou Cronicamente inviável de “abacaxi de caroço” e sugeriu que você faz filmes para satisfazer a comunidade da USP.
Bianchi –
O que o irritou profundamente, e também às pessoas que pensam
igual a ele, ou seja, os arautos da felicidade escravocrata, foi aquela seqüência que
mostra uma multidão no Carnaval da Bahia. Nela é feita uma comparação da visão sulista – que copiou tudo da Europa, só não trouxe o anarquismo e o terrorismo – com a dos baianos, que são muito inteligentes porque colocam música para
dançar e continuam dominando. É claro que não vão gostar do que eu faço. Eu
não gosto de escravatura mesmo.

ISTOÉ – Caetano Veloso gosta do Zé Celso (diretor do Grupo Oficina).
Bianchi –
Eu também gosto. O Zé Celso é hedonista de uma forma revolucionária, de usar o prazer para o crescimento do ser humano. O Caetano é um hedonista de uma forma falsa, de dominação de poder, de formar uma corte.