O segundo maior atributo de Bob Dylan é reinventar-se constantemente. Porque o primeiro e maior deles é ter inventado a si próprio. Já nas entrevistas do princípio da carreira, o criador do hino hippie Blowin’ in the wind se apresentava como uma “pedra rolante” de origem desconhecida, quando era um garoto de classe média da prosaica cidade de Duluth, nos confins do obscuro Estado de Minnesota. Assim, quando sua suposta autobiografia foi anunciada, todos esperavam uma espécie de verdade setentrional que o redimisse de suas mentiras. Mas Crônicas – volume 1 (Planeta, 328 págs., R$ 44,90), que está sendo lançado na XII Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, aberta na quinta-feira 12, não é uma coisa nem outra. Mas “apenas” o que o título indica, o que é muitíssimo em se tratando da maior figura dos famigerados anos 60. Se alguém duvida, basta lembrar que foi Bob Dylan quem apresentou maconha aos Beatles, no dia 28 de agosto de 1964, como detalha o insuspeito jornalista Elio Gaspari em sua pentalogia sobre a ditadura no Brasil.

Mas que não se esperem números, datas ou fofocas na prosa de Dylan. O livro, que já vendeu mais de 500 mil exemplares nos Estados Unidos desde seu lançamento em outubro do ano passado e é forte candidato à indicação ao prestigiado Prêmio Pulitzer, traz confissões de um artista lúcido e, pode-se dizer, erudito. Logo de saída, o astro esclarece que não chegou em Nova York, que chama de “Gomorra moderna”, romanticamente de carona em algum trem de carga como alardeava. Na verdade, veio guiando um sedã Chevrolet Impala, quatro portas, 1957 direto de Chicago. A cena e os clubes de Greenwich Village, zona boêmia de Manhattan, são minuciosamente descritos. Estão lá o Gasligth, o Café Bizarre, o Folklore Center, o Mills Tavern e o Café Wha!, que, além de música, apresentava shows humorísticos com Richard Pryor, Woody Allen e Lenny Bruce, então anônimos. Segundo Dylan, um dos segredos para se ganhar dinheiro em bares era ter uma garota bonita para passar o chapéu no fim do show.

Dylan confessa que perdeu a “paixão pela burrice” e se livrou da “fuligem em sua mente” – composta por um mix de James Dean, Marlon Brando, Tennessee Williams, Fidel Castro, Marilyn Monroe, Holiday Inns, Chevys envenenados e J. Edgar Hoover, entre outras coisas – graças à biblioteca do apartamento onde morava de favor. Do dia para a noite, o caipira Robert Allen Zimmerman passou a ter acesso a livros de filosofia e de história, a escritores como Maquiavel, Dickens, Maupassant e Balzac e poetas como Shelley, Milton e Byron. O deslumbre foi tanto que tomou emprestado o nome do poeta Dylan Thomas e chegou a colocar melodia no poema Os sinos, de Poe.

Como Tom Wolfe, no recém-lançado Eu sou Charlotte Simmons, em que batiza de Cidade de Deus os alojamentos de estudantes da fictícia Universidade Dupont, numa alusão ao filme de Fernando Meirelles, Dylan não resistiu em citar o Brasil. Ao colocar imagens, metáforas e frases de efeito sobre a estrutura melódica simplória do estilo folk, Dylan foi atacado pela crítica e compara o que fez à bossa nova. Segundo ele, artistas como João Gilberto, Roberto Menescal e Carlos Lyra estavam criando uma nova forma musical ao promover mudanças melódicas no samba “infestado” por tambores. Note-se que ele não fala de Tom Jobim, Astrud Gilberto e Stan Getz, acessíveis ao público médio americano, mas vai às fontes.

Esta revelação aparece no capítulo A terra perdida, o segundo do livro, sobre os primeiros anos em Nova York. Na seqüência, New morning, trata dos anos de exílio no interior, em Woodstock, Oh mercy, da década de 80, da experiência com o grupo Traveling Wilburys e do rap, e Rio de gelo o traz de volta à paixão por Woody Guthrie, tema de sua primeira composição, Song to Woody, de 1962. A editora Simon & Schuster tem um contrato para mais dois volumes, mas ninguém sabe quando
Dylan se sentará na frente de um computador outra vez. Este ano, ele pretende
gravar um disco de estúdio e, em agosto, coloca nas lojas o sétimo Bootleg series, com gravações inéditas. No momento, excursiona com o cantor country Merle Haggard e, no segundo, se juntará a Willie Nelson. Em setembro, Martin Scorsese lança pela PBS, rede pública de televisão americana, No direction home, documentário de três horas e meia. Dividido em duas partes, o filme mostra cenas nunca vistas da vida de Dylan entre 1961 e 1966. Para coroar a onipresença do compositor de Like a rolling stone, até seu filho mais famoso, Jacob, lança no dia 24 o quinto disco de seu grupo, Wallflowers. Rebel sweetheart chega às lojas exatamente no dia em que papai faz 64 anos!