“Da parte de Alexandre há uma certa frieza. Já Anna Carolina me parece instável e impulsiva. Isabella foi jogada pela janela como simulação de uma morte acidental e isso pode revelar traços psicopáticos. Mas discordo do diagnóstico de epilepsia condutopática”, diz o psiquiatra forense e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre José Taborda. Atitudes anteriores de Alexandre podem ilustrar um quadro de frieza e impulsividade. Segundo seus próprios familiares, ele teria, em meio a discussões, deixado quase bobamente um de seus filhos cair, de seu colo, ao chão. Em outra ocasião, numa loja de departamentos, apanhou esse mesmo filho por um dos braços, descreveu um meio círculo com o corpo dele no ar e o atirou no carrinho de compras. Tudo explosão. Sempre de momento. Nada premeditado, mas mesmo assim apontando para aquilo que se caracteriza como “baixa tolerância à frustração” e “temperamento irritadiço”. “Às vezes o ser humano se perde. Nem sempre somos donos das nossas reações, embora sejamos sempre responsáveis por elas”, diz o professor de criminologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Pedro Paulo Bicalho.

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A ciência abrange diversas teorias para uma mesma psicopatologia. Não fosse assim, ela estagnaria – ainda mais no complexo terreno da mente humana. Se os poetas alardeiam que “o coração é terra que ninguém conhece”, e Alexandre e Anna Carolina costumavam repetir essa máxima romântica em seus momentos de reconciliação após as infindáveis brigas em decorrência de um ciúme doentio, digamos que os cientistas poderiam pragmaticamente afirmar que “a cabeça é terra que não se cessa de conhecer”. Assim, novas teorias sobre psicopatia indicam que assassinos com esse transtorno de personalidade são criaturas que não conseguiram condicionar em seus cérebros a ansiedade. Em outras palavras: o psicopata, por exemplo, não tem medo da polícia, mas não porque não tema a punição. É, isso sim, porque ele não sente o desconforto da ansiedade que antecede a perspectiva da punição.

Esses indivíduos, porque não padecem com essa ansiedade, são frios, não têm empatia (não se colocam no lugar do outro) e são capazes de premeditar o ato cruel – premeditação que não existiu no caso de Alexandre e da madrasta. Sem falso moralismo, sem hipocrisia, e olhos nos olhos com a própria consciência, qual pai ou mãe já não se irritou com o berreiro de um filho? Anna Carolina andava irritada com o choro contínuo de seu filho menor. “Existem diversos perfis de pessoas que matam crianças e diversas causas para o homicídio infantil. Uma das mais comuns, por incrível que pareça, é pai ou mãe que não toleram choro infantil”, diz uma psicóloga do Rio Grande do Sul que pede para não ser identificada. A irritação de qualquer ser humano é processada na região do cérebro conhecida como sistema límbico. É modulada pelo córtex pré-frontal que “pondera pela razão” uma resposta proporcional ao estímulo irritativo – é como se essa parte do cérebro nos alertasse a todo momento até onde podemos ir nessa resposta emocional dentro de um comportamento que se espera de seres humanos que convivem em sociedade. Tanto Anna Carolina quanto Alexandre, poucos dias antes da morte de Isabella, tinham consultado psiquiatras e saído dos consultórios com receitas de antidepressivos e ansiolíticos nas mãos. Compraram o medicamento, mas não o tomaram. Ela andava mesmo se queixando da rotina que limitava sua vida aos cuidados exaustivos que tinha de ter com três crianças, e ele vivia à época bastante estressado com mazelas familiares. “Nenhum ser humano está imune a expressar uma resposta impulsiva, ter uma explosão pontual e desproporcional”, diz o neuropsicólogo e coordenador do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, Antonio de Pádua Serafim.

Se a perplexidade e a revolta da população brasileira se dá não apenas pela barbaridade do crime mas também pela aparente falta de motivação para a morte da inocente Isabella, a tese da acusação, de que tudo se deu devido ao exacerbado ciúme que Alexandre e Anna Carolina sentiam um do outro, ganhou cada vez mais espaço. Como todos os sentimentos humanos, também o ciúme, no campo da psiquiatria, tem um continuum – ou seja, gradações. Qualquer que seja a escala na qual ele se enquadre, essa desnorteante emoção, no entanto, está longe de ser “o perfume do amor”, como cantou o poeta Vinícius de Moraes, e se localiza muito mais próxima de um “mórbido estado de psicopatologia” como a definiu Sigmund Freud. Alexandre possuía tal ciúme doentio a ponto de controlar a quilometragem do carro de Anna Carolina para saber se ela utilizava o veículo apenas para levar e apanhar as crianças na escola, como era a sua ordem. E, assumidamente, é “mulherengo”. Anna, por sua vez, não o traía, mas insinuava seduções para lhe plantar o ciúme na alma e não se imaginava “vivendo sem ele”, numa simbiose na qual os indivíduos se despersonalizam. Isabella, involuntariamente, era o símbolo concreto da presença da ex-mulher de Alexandre. “Se o sujeito acredita que é impossível viver sem sua esposa e tem uma filha que ameaça essa relação, ele pode matar a filha para não perder a mulher. Por mais horror que nos cause, isso é um fato psiquiátrico”, diz Miguel Chalub, psiquiatra forense do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro. Se de fato foi esse o motivo que levou à morte de Isabella, Alexandre e Anna perderam a menina e também se perderam um do outro. Pelas próximas décadas, com ou sem ciúme, não se verão e só conversarão por cartas, cada um em sua cela nas penitenciárias onde permanecerão encarcerados na cidade de Tremembé.

Por dentro do julgamento (O diário de quem assistiu a tudo)

Primeiro dia
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Início: 14h17
Término: 21h45

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Primeiro dia de um dos julgamentos mais importantes do País. No banco dos réus, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, acusados de ter matado a menina Isabella em março de 2008. Na porta do Fórum de Santana, em São Paulo, mais de 50 pessoas, entre estudantes de direito e curiosos, formavam uma longa fila desde as 4h30. Todos na expectativa de assistir ao júri, marcado para às 13h. Os trabalhos só começaram às 14h07. Sucedeu-se uma cansativa parte burocrática e a formação do conselho de sentença, com o sorteio dos sete jurados que decidiriam o destino dos réus. Público e júri receberam a primeira testemunha às 19h30, a mãe de Isabella, Ana Carolina de Oliveira. Ela chorou quatro vezes ao relembrar a morte da filha e comoveu a todos. Mas Ana nem imaginava a desagradável surpresa que lhe esperava: a pedido do advogado de defesa do casal, Roberto Podval, ela não foi liberada após o testemunho e teve de permanecer incomunicável até a manhã da quinta-feira 25, sem poder assistir ao julgamento.

Segundo dia
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Início: 10h15
Término: 19h30

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Trunfo anunciado pela promotoria, as duas maquetes do edifício London amanheceram no plenário na terça-feira. Uma reproduzia em escala todo o prédio, com seus acessos de entrada e áreas comuns. Outra mostrava a planta do apartamento dos Nardoni. Foi em torno das reproduções do edifício que a delegada Renata Pontes deu seu testemunho e reafirmou a convicção de que o casal era o responsável pela morte de Isabella. Pela tarde, dois depoimentos que mais pareceram miniaulas sobre investigações periciais. Primeiro, o médico-legista Paulo Tieppo fez somar às maquetes outro recurso: a exibição de fotos da autópsia. Um júri atento assistiu a imagens do coração, do pulmão e da região da garganta da menina, acompanhadas pela explicação detalhada de Tieppo – tão minuciosa que muitas vezes escapava à compreensão de um leigo. Em seguida, um dos maiores especialistas em manchas de sangue do País, o perito Luiz Eduardo Dorea, desvendou ao júri como os peritos interpretam a cena do crime a partir das gotas de sangue encontradas. Após um primeiro dia de emoção, tinham início os tão aguardados debates técnico-científicos acerca do caso.

Terceiro dia
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Início: 10h15
Término: 19h15
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À defesa, o terceiro dia era a possibilidade de pôr em xeque a interpretação da perícia para as provas científicas. À promotoria, a oportunidade de confirmar a tese de que os Nardoni eram os responsáveis pela morte de Isabella. No centro das atenções, a perita do Instituto Criminal Rosângela Monteiro, responsável pelos laudos do caso e protagonista do depoimento mais longo dos cinco dias de julgamento. Foram cinco horas e 13 minutos, recheadas por alusões aos métodos periciais usados durante as investigações. Não houve na sala quem não saísse inteirado sobre o uso dos reagentes Bluestar e Hexagon (indicados para a detecção de sangue nas cenas de crime) ou das luzes forenses (lanternas especiais que permitem a visualização de impressões digitais). Aos termos técnicos, acumulavam-se as informações: se por um lado Rosângela afirmou que foi mesmo Alexandre quem jogou Isabella pela janela, por outro admitiu não ter comprovação de sangue da menina na fralda nem nas roupas do casal. A munição para o debate final estava dada. As outras duas testemunhas ouvidas na quarta-feira ficaram como coadjuvantes.

Quarto dia
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Início: 10h45
Término: 20h50
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Finalmente, o depoimento do casal Nardoni. Primeiro ele, depois ela. O clima é quente, tanto na temperatura quanto na tensão. No plenário, o choro se espalhava, vindo das famílias, de jurados, da plateia e até de uma das policiais. dona Cida, mãe de Alexandre, vai pela primeira vez ao julgamento do filho. Emociona-se tanto ao vê-lo que, aos prantos, sai antes mesmo do início do inquérito. Pouco depois, no mesmo Fórum, emoção parecida era sentida por outra mãe, dona Rosa, ao reencontrar a filha, Ana de Oliveira – cerrada na sala das testemunhas desde o início do julgamento. E mesmo Alexandre, tido como pouco emotivo, tem os olhos marejados e a voz embargada ao relatar o momento em que viu a filha estirada no gramado do edifício London e, posteriormente, a imagem da menina no saco preto do necrotério, esperando identificação. Durante a tarde, falando baixo e chorando muito, é a vez de Anna Carolina Jatobá. Novas lágrimas. O clímax é quando ela, também mãe, se lamenta por não estar acompanhando a vida de seus filhos, Pietro e Cauã. Paira sobre o plenário a incômoda sensação da dúvida: será que foram eles?

Quinto dia
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Início: 10h26
Término: 00h45 do sábado 27
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Após três dias de depoimentos das testemunhas, um dia de inquérito com os réus e oito horas e cinco minutos de debates entre o promotor e o advogado de defesa, foi a vez de os jurados decidirem pela culpa ou pela inocência do casal. Mediante as evidências postas pelo promotor Francisco Cembranelli, surgia a dúvida sugerida pelo advogado Roberto Podval. E se Cembranelli usava o perfil psicológico da ré para justificar o crime (provocado pelo destempero de Anna Carolina Jatobá), Podval apostava na justificativa sociológica para a liberação (alegando que um comportamento conturbado não seria sinônimo de um criminoso cruel, capaz de esganar e atirar uma criancinha do alto de um prédio). À 0h29, o Brasil tinha a resposta para a difícil decisão tomada pelos jurados. Frente a frente com o juiz, os réus ouviram a sentença: foram considerados culpados pelos crimes de homicídio triplamente qualificado e de fraude processual. Na madrugada do dia 27 de março, aos gritos da multidão reunida em frente ao Fórum, encerrava-se o julgamento do casal Nardoni, dois dias antes do segundo ano de aniversário da morte da menina Isabella.

OUTROS CASOS CHOCANTES

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VIOLÊNCIA
Suzane matou os pais. Neves, a namorada. Alexandre jogou o filho contra um carro

Era fevereiro de 2003. Em Campinas (SP), o casal Alexandre e Sara Alvarenga protagonizou uma cena chocante: depois de bater o automóvel da família em outro carro, Alexandre arremessou o filho, de 1 ano, contra o para-brisa do veículo. A irmã, então com 6 anos, foi arrastada até o parque ao lado. A mãe passou a bater sua cabeça contra uma árvore e só parou depois de ser contida por várias pessoas. Dois anos depois, Alexandre e Sara foram absolvidos pela Justiça com o argumento de que teriam sofrido um surto psicótico. Suzane Von Richthofen fez o inverso. Ajudou a matar os pais, Manfred e Marísia, em 2002, em São Paulo. Não teve surto. Ao contrário, planejou o crime com a ajuda dos irmãos Daniel e Christian Cravinhos. Daniel era seu namorado. Outros crimes chocaram, por motivos diferentes. Em 2000, o jornalista Antônio Pimenta Neves matou a namorada, Sandra Gomide, em Ibiúna, em São Paulo. Ele confessou o crime e alegou que o motivo foi o fim do relacionamento entre os dois. Ele foi condenado a pena máxima, mas recursos judiciais lhe permitem ficar em liberdade. Vinte e quatro anos antes, Doca Street matou a socialite Ângela Diniz, com quatro tiros, no Rio de Janeiro. O assassinato aconteceu depois de uma discussão com Ângela, por ciúme. Doca foi condenado. Passou 15 anos na prisão.

Leia mais:

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