Em A lua me disse, folhetim global
das sete, Anastácia e Jurema são irmãs desbocadas, petulantes, que não levam
desaforo para casa. Cariocas da gema, elas sonham com uma vida glamourosa e
querem ser popstars como as americanas Latoya Jackson e Whitney Houston, de quem, aliás, tomaram emprestados os nomes. São negras e se inspiram nas divas black para compor o visual de cores berrantes – mas se dizem “morenas, filtro solar 60”. Com um atrevimento que desconcerta o espectador habituado às tramas água-com-açúcar do horário, as personagens de Zezeh Barbosa (Anastácia/Latoya) e Mary Sheila (Jurema/Whitney) têm sido responsáveis pelas melhores cenas de humor da novela de Miguel Falabella e Maria Carmen Barbosa.

Não fosse a interpretação impagável das duas atrizes e o bom texto dos autores, o folhetim correria o risco de ser considerado racista logo na primeira cena. Latoya e Whitney fazem tudo para esconder os traços. Mantêm os cabelos lisos à custa de muita chapinha e até inventaram um método de plástica instantânea para afinar o nariz. O truque consiste em manter as narinas presas por pregadores de roupa durante horas. Quem arrisca fazer menção à negritude das garotas recebe no ato uma resposta malcriada. Numa das cenas, o personagem Meia-Noite (Jorge Maya) declama à amada Latoya o poema Essa nega Fulô, de Jorge de Lima, e ouve uma série de impropérios. Já Whitney detesta a patroa, a dondoca Madô (Deborah Bloch), que a chama de Jurema, seu nome de batismo, e a trata de “criada afro-descendente”. Em resposta, a moça só se refere à patroa como “macaca branca”. Soa como filme de Spike Lee, mas o resultado é puro Almodóvar.

Neochanchada – Apesar do tom de comédia – Falabella e Maria Carmen preferem o rótulo “neochanchada pop” – as entidades de defesa dos direitos do negro já estão de olho na novela. O advogado Hédio Silva Jr., que, entre outros casos, acompanhou a polêmica envolvendo o atacante Grafite e o zagueiro argentino Leandro Desábato, encaminhou um pedido ao Ministério Público Federal para avaliar se há intenção de racismo no texto das personagens. “Falta contextualizar como Latoya e Whitney desenvolveram a aversão à própria raça”, opina. O presidente da Comissão do Negro e de Assuntos Antidiscriminatórios da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marco Antonio Zito Alvarenga, é mais brando. “Não vejo como racismo, mas aquilo não acrescenta nada à comunidade negra”, afirma. Para Falabella, não há com que se preocupar. O autor acha que seu recado é claro. “Pessoas inteligentes vão ver que estamos discutindo um problema: a auto-estima do negro, que sempre foi maltratado, sacaneado e iludido. E, se me disserem que isso não existe, vou dizer que é mentira”, explicou na entrevista de apresentação da novela.

Mas o tema é polêmico por natureza. As próprias atrizes ficaram receosas ao lerem as primeiras cenas. “Quando recebi o convite para fazer Whitney, tive medo de ser apedrejada na rua. Mas acho que o público está compreendendo a mensagem”, diz Mary, estreante em novelas. Antes, interpretou outro papel cômico, a escrava Beata, na minissérie A casa das sete mulheres. Mas no teatro é veterana. Nascida e criada no Morro do Vidigal, desde os sete anos atua no grupo teatral Nós no morro. Zezeh, que pela terceira vez integra o elenco de uma produção de Falabella – estrelou o espetáculo As sereias da zona sul e o folhetim Salsa e merengue –, é categórica. “Não existe forma melhor de tocar num problema sério como o racismo do que fazer as pessoas rirem do ridículo. O telespectador entende que a busca histérica das duas pelo embranquecimento é patética”, explica. “É um avanço ter numa novela atrizes negras que não são coadjuvantes carregando bandeja e com a mão na maçaneta pra abrir a porta para personagem branco.” Que sirva de exemplo a ótima Ruth de Souza, sempre lembrada para fazer domésticas.