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IMITAÇÃO
As esculturas que representam as estações do ano, na Praça Paris, são uma réplica
das que existem no Palácio de Versalhes, na França

Uma obra de arte é mais do que a peça em si. Para ter seu valor reconhecido, é necessário  que ela esteja associada ao nome do artista que a criou, independentemente da técnica empregada e da beleza de suas formas. Assim, ela se funde com o autor e sua história, como nos casos da escultura de Davi, de Michelangelo, ou da Monalisa, de Da Vinci. Ernst Gombrich, um dos mais célebres historiadores de arte do século XX, dizia que “nada existe realmente a que se possa dar o nome de arte. Existem somente artistas”. Nas ruas, largos, praças e jardins do Rio de Janeiro é possível admirar algo em torno de 700 obras, entre estátuas, bustos, chafarizes, relógios e outras esculturas. Algumas são criações de artistas renomados, como o francês Mathurin Moreau (1822-1912) e o italiano Antonio Canova (1757-1822), tidos como grandes escultores da humanidade, além das obras de Mestre Valentim (1745-1813), um dos principais artistas do Brasil colonial. É um verdadeiro museu a céu aberto.

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BARÃO
A única informação certa é que o busto do Barão do Rio Branco data de 1926

No entanto, pelo menos 100 dessas obras estão envoltas no mais profundo mistério. Não se conhece a autoria, a origem e muito menos o porquê de elas estarem em determinados lugares da cidade. Elas transformaram- se em patrimônio público, mas a falta de uma referência histórica deprecia seu valor artístico e cultural. Um dos casos mais emblemáticos é o da estátua de Mercúrio feita em mármore carrara, de dois metros e meio de altura, postada em frente ao Planetário da Gávea, na zona sul do Rio, desde a década de 1970. Ninguém sabe quem é o artista que esculpiu a estátua e muito menos como ela foi parar lá. A escultura de uma mulher sobre um felino, também em mármore carrara, localizada no Jardim de Alah, entre Ipanema e Leblon, na zona sul carioca, é outro mistério. Não se sabe que mulher é aquela, a assinatura do artista está ilegível e não há indicação sequer de quando a escultura foi confeccionada. Até mesmo obras mais recentes e mais conhecidas do público, como o relógio da Glória, inaugurado pelo prefeito Pereira Passos em 1905, o busto do Barão do Rio Branco, que data de 1926, e a efígie de Lamartine Babo, de 1966, não têm pistas sobre os autores. A certeza, nem tão absoluta, é de que algumas das obras misteriosas são do período neoclássico e não foram feitas no Brasil. Tanto podem ter vindo para cá por encomenda da família imperial como podem ter sido importadas pelos barões da economia do século XIX para adornar prédios e mansões.

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NA GLÓRIA
Sabe-se que o relógio da  Glória foi inaugurado
pelo prefeito Pereira Passos em 1905

É possível até que tenham sido feitas aqui e sejam meras réplicas de monumentos internacionais. Tentando decifrar o mistério, a arquiteta e pesquisadora Vera Dias, diretora de monumento e chafarizes da Fundação Parques e Jardins do Rio, investiga, há mais de 20 anos, a origem e autoria dessas obras. Mas é como procurar agulha num palheiro porque faltam documentos e outras fontes de informação. “Buscamos pistas em jornais antigos, livros, catálogos de museus e na internet. Consultamos pessoas que conhecem obras de arte e museus de todo o mundo”, explica. Graças a essa verdadeira investigação, em 1996, o cadastramento dos monumentos cariocas propiciou uma revelação preciosa: o valioso patrimônio das peças da Fundição de Val D’Osne, a mais importante fundição francesa do século XIX, espalhadas pela cidade. O trabalho concluiu que o Rio de Janeiro é a segunda metrópole a possuir o maior número de peças em ferro fundido do mundo, perdendo apenas para Paris. Vera também descobriu que o conjunto das esculturas que representam as estações do ano, todas em mármore carrara, instaladas na Praça Paris, na Glória, na zona sul do Rio, é uma réplica do existente no Palácio de Versalhes, na França.

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NA RUA
Na Gávea, e a de uma mulher sobre um felino, no Jardim
de Alah: autor desconhecido

Até o jardim onde estão instaladas as obras copia o original francês. No caso da estátua de Mercúrio, Vera acredita que ela compõe um conjunto que está espalhado pela cidade e que inclui três representações da deusa Atena: Arte, que enfeita o Bosque da Freguesia, na zona oeste da cidade; Ciência, localizada na Praça dos Estudantes, em Campo Grande, também na zona oeste; e Indústria, instalada no Jardim do Méier, zona norte. A única informação documentada é sobre a deusa Atena do Bosque da Freguesia. Mesmo assim, nada muito relevante: ela foi colocada naquele local em 1995 e, antes, esteve na Praça das Nações, em Bonsucesso e, também, num depósito da Fundação Parques e Jardins. As características das estátuas levam a pesquisadora a acreditar que elas tenham sido feitas pelo mesmo artista. “Mas quem é o escultor?”, pergunta, aflita, Vera. A história das obras públicas cariocas começa no século XVIII, quando tem início a ocupação do Rio de Janeiro e  surgiram os chafarizes, que, além de embelezar a cidade, permitiram aos habitantes da colônia acesso à água, contribuindo para o surgimento dos aglomerados urbanos.

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NA RUA
A estátua de Mercúrio.

A partir do desembarque da corte Portuguesa ao Brasil, a arte pública recebeu incentivos. Em 1843, chegaram as primeiras esculturas em mármore de carrara para adornar o cais onde iria desembarcar a imperatriz Tereza Cristina, futura esposa de dom Pedro II. Ainda neste período imperial, foi erguido, em 1862, o primeiro monumento do País, a estátua de dom Pedro I na Praça Tiradentes, no centro do Rio. De lá para cá, a cidade incorporou em seu espaço público obras de heróis nacionais e internacionais e, de uns tempos para cá, também de artistas como Dorival Caymmi, de jornalistas como Zózimo Barrozo do Amaral e de escritores como o poeta Carlos Drummond de Andrade. Em meio a tantas celebridades, as obras misteriosas, que desafiaram a ação do tempo e dos vândalos, agora buscam paternidade e certidão de nascimento.