Junte 12 países da América do Sul com 22 países integrantes da Liga Árabe. Acrescente cerca de mil empresários, sendo 300 árabes, outros tantos sul-americanos e os demais do Brasil. Traga toda essa gente para Brasília e, como tempero, além do anfitrião, Luiz Inácio Lula da Silva, incluam-se, entre outros, os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, da Palestina, Mahmoud Abbas, do Iraque, Jalal Talabani, do Uruguai, Tabaré Vázquez, do Peru, Alejandro Toledo, da Argélia, Abdelaziz Bouteflika e, por último, mas não menos importante, o mercurial Néstor Kirchner, da Argentina. Coloque na agenda, além de uma pauta econômica feita para americano ver, os tradicionais problemas do Oriente Médio, como a ocupação da Palestina por Israel, o Iraque, o terrorismo e as sanções americanas à Síria. Como tempero extra, as conhecidas brigas entre Brasil e Argentina no âmbito do Mercosul. A possibilidade de que essa mistura explosiva não desse certo era bastante razoável. Mas, apesar de tudo, a Cúpula América do Sul-Países Árabes terminou sendo um relativo sucesso, com a proclamação da Declaração de Brasília, alentado documento de 15 páginas no qual sobraram petardos, aos EUA, por causa de seu unilateralismo, e a Israel, pela ocupação de territórios palestinos. O resultado poderá colocar o Brasil e a América do Sul como atores efetivos nas grandes questões mundiais, como o conflito do Oriente Médio. Mas também há o risco, nada desprezível, de esse protagonismo dar errado, trazendo para o continente conflitos de que a América do Sul estava livre até agora.

“Iniciamos a construção dos alicerces de um novo edifício que une a América do Sul aos países árabes”, afirmou Lula em seu discurso de encerramento. O presidente destacou que as duas regiões estavam iniciando um processo de conhecimento mútuo e descobrindo “que somos muito parecidos”. Usando os termos da Declaração de Brasília, Lula defendeu a saída de Israel dos territórios ocupados da Palestina, ao afirmar: “Comecei minha carreira política defendendo a Palestina, mas também a existência do Estado de Israel.” Ele destacou que o Brasil e a América do Sul são exemplos de convivência pacífica entre árabes e judeus e têm “muito a ensinar ao mundo”.

Até chegar à festa de encerramento no Hotel Blue Tree, em Brasília, vizinho ao Palácio da Alvorada, a cúpula passou por muitos problemas. Primeiro, foram as pressões dos Estados Unidos, preocupados com a possibilidade de que a reunião, vendida pelo Brasil como um evento econômico, descambasse para a política internacional. O resultado final mostra que os americanos e, por tabela, Israel, tinham razão. É verdade que o Brasil e a América do Sul sonham em exportar mais de US$ 20 bilhões para os ricos árabes dentro de três anos. Mas o forte mesmo foi a política. Além de criticados pelo unilateralismo, os EUA viram as sanções que impuseram à Síria serem consideradas ilegais e exigida, mais uma vez, a retirada de Israel da Palestina. Sobrou para Israel também um capítulo em que a América do Sul e os árabes decidem que suas regiões devem ficar livres de armas nucleares. Como é Israel quem as tem, a crítica terminou sendo direta.

Os 34 países presentes também defenderam a reforma da ONU e uma ação conjunta na Organização Mundial do Comércio contra o protecionismo. Até no combate ao terrorismo, tema caro ao presidente dos EUA, George W. Bush, o pessoal reunido em Brasília conseguiu deixar Washington de cabelos em pé. O terrorismo foi condenado, mas se defendeu o direito de países e povos ocupados por forças estrangeiras lutarem contra o invasor, o que foi interpretado por muitos como concessão aos grupos armados Hamas, da Cisjordânia, e Hizbolá, do Líbano. Não houve menção direta à democracia, como queria o Brasil. Seria difícil, contudo, imaginar que os países árabes, onde proliferam ditaduras e monarquias absolutistas, conclamassem ao suicídio coletivo.

Diplomacia do jantar – Mas a cúpula não foi apenas composta de longas reuniões nas salas refrigeradas do Blue Tree ou do Centro de Convenções Ulysses Guimarães. Os hotéis tiveram que se adaptar aos hábitos dos hóspedes islâmicos, providenciando salas de orações com tapetes e bússolas apontando para Meca, cidade sagrada para os muçulmanos. Houve lances hilariantes, como um cachorro da raça cocker spaniel – trazido pela comitiva da Arábia Saudita para farejar bombas – que ganhou uma suíte exclusiva no hotel Meliá.

Na segunda-feira 9, Lula exerceu sua diplomacia do jantar, recebendo na Granja do Torto Néstor Kirchner e Hugo Chávez para comer pirarucu assado e bife à rolê, regados a vinho Casa Valduga. Com o primeiro, o presidente brasileiro selou a paz, depois de uma semana de divergências sobre temas comerciais e de liderança regional, sob os aplausos do venezuelano. Os três acertaram uma cooperação na área de energia que deverá render a construção de uma refinaria no Nordeste, exploração de petróleo na Venezuela e na Argentina pela Petrobras e pela PDVSA. Essa parceria culminará na fundação da Petrosul, que terá como sócias as gigantes PDVSA (da Venezuela) e Petrobras, além da nova estatal argentina Enarsa.

Programas – Na mesma noite em que Lula, Kirchner e Chávez se acertavam, um líder árabe com mais de 70 anos preocupou o Itamaraty. Animado, ele levou para sua suíte nada menos que três belas moças. “Perdemos o sono. Já pensou se ele não resiste e tem um enfarte?”, comentou a ISTOÉ um diplomata. Felizmente, tudo terminou bem. Já em uma boate especializada, o preço dos serviços das garotas de programa foi dolarizado. Passaram de R$ 200 para US$ 200 e daí por diante. Mas festa mesmo aconteceu no Itamaraty, na noite de terça-feira 10, com um jantar para 350 pessoas, seguido por um show de carimbó e de frevo. Entre os pratos havia cordeiro ensopado com legumes, cuscuz marroquino, camarão na moranga com catupiry, fritada de peixe e bacalhau, entre outros pratos. Como sobremesa, musse de caqui, sorvete de jabuticaba, pudim de queijo e doce de abóbora. Os vinhos eram da Casa Valduga. Acompanhando o café, cachaças de primeira linha.

Kirchner perdeu a festa, pois, em um de seus rompantes, ao estilo Jânio Quadros e Itamar Franco, tinha ido embora, alegando que já resolvera os assuntos pendentes com Lula. O chanceler Rafael Bielsa, que na semana anterior envenenara as relações bilaterais, saiu-se com uma bem-humorada tirada ao sugerir que o Corinthians deveria contratar como técnico seu irmão, Marcelo Bielsa, “que, inclusive, ganhou medalha de ouro na Olimpíada de 2004, com um time que tinha Tevez como a principal estrela”.