O que os dois universitários paulistas, mochileiros, buscavam em julho de 1970, quando viajavam de carona com destino a Salvador, era exercitar uma das atividades que mais gostavam: a pesca submarina. E, no entanto, o que encontraram foi algo que – àquela altura da vida política brasileira – poderia ser definido como um peixe grande. A carona que obtiveram na manhã daquele chuvoso 10 de julho se transformou numa experiência que hoje, 35 anos depois, não conseguem apagar da memória.

José Henrique Serra Russo – estudante de engenharia da Escola Politécnica de São Paulo e roqueiro – e seu companheiro de viagem, Antônio Omar Árias Perez Figueredo, estudante de economia da Faculdade Mackenzie, ambos com 21 anos, desceram da boléia de um caminhão em frente ao posto de pesagem da cidade de Além-Paraíba (MG). Cansados e com pouco dinheiro, sonhavam com uma nova carona que os levasse até Salvador, mas foram abordados por uma patrulha do Exército. Depois de uma revista nas mochilas, o militar se convenceu de que se tratava, de fato, de dois andarilhos e os liberou. Eles seguiram para a estrada e fizeram o clássico sinal de carona ao motorista de um Fusca azul, com placas de Londrina (PR), que passava.

“Para onde é que vocês estão indo?”, perguntou. Os jovens responderam e o motorista mandou que entrassem. “Rodamos uns poucos quilômetros, jogando conversa fora até que ele subitamente parou o carro. Sacou de um revólver de cano longo, que se encontrava sob seu assento, e disse em tom ameaçador: “Se estão com intenção de me assaltar não tentem, porque eu mato os dois e é bom que saibam que sou um ótimo atirador”, contou José Henrique. Apavorados, mostraram suas carteiras de estudante. “Ele acabou se convencendo de que não éramos assaltantes e pediu desculpas, explicando que as estradas andavam infestadas de ladrões”, disse José Henrique, que hoje mora em Ubatuba, litoral paulista.

“Seguimos viagem até Feira de Santana. Mas foi somente em Salvador, ao nos depararmos com os cartazes de ‘terroristas procurados’, que nos demos conta de que havíamos viajado de carona com o célebre capitão Lamarca, líder guerrilheiro procurado em todos os cantos do País.” José Henrique e Antônio Omar lembram que a viagem foi tranqüila. Lamarca disse que se chamava Mário e que era técnico da Petrobras. Revelou também que era viúvo recente e que havia ido visitar os sogros em Londrina. “Ele parecia um homem muito seguro da identidade que assumira. Dirigia muito bem. Quando parou, pedimos para tirar umas fotos, dizendo que era nosso costume. E ele não se opôs. Botei a câmera, uma Flexaret tcheca, no automático, e fizemos duas fotos.”

Os dois afirmaram que na altura de Jequié, Lamarca parou o carro num restaurante rústico para comer. “Já eram dez da noite quando jantamos e conversamos trivialidades. Ele pagou a conta. Voltamos a viajar por cerca de uma hora e ele novamente parou dizendo que precisava descansar: ‘Vocês dois durmam aí fora, disse-nos.’ Era cinco da manhã quando começou a chover. Batemos no vidro e Lamarca nos deixou entrar. Dali partimos rumo a Feira de Santana, onde tomamos café e nos despedimos”, relembram. Anos depois, quando o Brasil já ingressava em sua fase democrática, José Henrique mostrou as fotos a dois militares amigos da família que haviam servido nos aparelhos da repressão. “Sem que eu dissesse nada, os dois identificaram o capitão Lamarca imediatamente”, finaliza.