É muito azar. Quase um ano depois de ter sido lançada pelo governo, e passar despercebida pelas barbas da opinião pública, a cartilha Politicamente correto & direitos humanos fez um barulho e tanto na última semana. O escritor João Ubaldo Ribeiro deu o pontapé inicial na polêmica: “É estarrecedor. Estamos ingressando numa era totalitária, em que o governo dá o primeiro passo para instituir uma nova língua e baixar normas sobre as palavras que devemos usar?”, questionou em seu artigo semanal no jornal O Globo, sobre a publicação da cartilha, que traz palavras, expressões e piadas condenáveis por seus conteúdos preconceituosos. Críticas e mais críticas encheram as páginas dos jornais. Autoritarismo, inabilidade e até “falta do que fazer” foram algumas das alfinetadas que opositores ferrenhos da publicação deram no governo. Alguns estudiosos chegaram a comparar a idéia à censura do regime militar.

Claro que a tal cartilha não se transformou em lei nem se trata de mais uma medida provisória: ninguém no País está obrigado a banir tais palavras de seu vocabulário ou escrita. Tudo leva a crer que é mesmo mais uma bela trapalhada do governo Lula, desta vez carregada de uma boa dose de petulância. A cartilha é, sim, equivocada em algumas idéias e, para piorar, muitas vezes mal redigida. Algumas expressões condenadas não vêm acompanhadas de explicação razoável, como é o caso da palavra “comunista”. A justificativa para que ela não seja utilizada é incompreensível: “Contra eles foram inventadas calúnias e insultos, para justificar campanhas de perseguição que resultaram em assassinatos em massa (…)” Sim, mas qual é o problema, afinal? O arquiteto Oscar Niemeyer, 97 anos, é comunista desde a juventude e não gostou nada, nada: “Eu me orgulho de ser um comunista. Não ser é que é problemático, é uma merda”, declarou. Juntaram-se à sua fileira outros comunistas empavonados, como o ministro da Articulação Política, Aldo Rebelo, do PCdoB.

Aliás, o secretário nacional dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, cuja pasta é responsável pela
edição da cartilha, também já foi o que se pode
chamar de comunista – ou “xiita”, outra palavra condenada pelo texto. Ex-militante da organização clandestina Polop, Nilmário passou três anos nos presídios Tiradentes e Carandiru, em São Paulo,
por ter lutado contra a ditadura e sua censura. Perly Cipriano, subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos e idealizador da cartilha, passou nada menos que dez anos atrás das grades por contrariar o regime dos generais. É de supor que
nem o secretário nem seu subordinado esqueceram
as agruras daqueles tempos. “Não há nada de autoritário na decisão do governo de publicar a
cartilha. É um texto educativo, não vai ser
transformado em lei”, defende-se o secretário. Ao
seu lado estão integrantes de movimentos de
direitos humanos e de minorias, que elogiaram a iniciativa. Para Luís Mott, do Grupo Gay da Bahia, por exemplo, é fundamental que se tente acabar com o uso de expressões pejorativas em relação aos homossexuais, como “bicha”, “viado” e “fresco”.

Certo é que a crise foi tamanha e não demorou muito para que, na quarta-feira 4, Nilmário Miranda voltasse atrás. A publicação foi suspensa e será novamente analisada pelo Comitê Nacional de Educação e Direitos Humanos. Integrantes da cúpula do governo, que até a última semana nem sequer tinham conhecimento da cartilha cujas despesas custaram R$ 30 mil aos cofres públicos, reprovaram o texto. E até o presidente da República se chateou com a história, pois entre as palavras condenadas está “peão”, como sinônimo de trabalhador, muito usada por Lula. “Ele deveria ser o primeiro a lê-la”, aconselha o autor da obra, o jornalista Antônio Carlos Queiroz – que diz ter recebido R$ 5 mil para fazer o trabalho –, referindo-se às gafes já cometidas pelo presidente. Segundo ele, “a idéia era fazer um sentido provocador, chamar a atenção sobre a imagem e a dignidade das pessoas diferenciadas, provocar mesmo”, afirma. Queiroz, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ainda rebateu o principal crítico da cartilha: “Quem mordeu a isca em primeiro lugar? João Ubaldo Ribeiro, um cara que gosta de alarmar que é conservador, detesta o governo Lula, xinga os ministros de asno e foi contra a demarcação das terras indígenas.” Pois é. Mas João Ubaldo recebeu um telefonema de Nilmário Miranda. E a cartilha de Queiroz foi parar na gaveta.