Uma explosiva mistura de espionagem industrial, operações de fiscalização de empresas distribuidoras de combustíveis e solventes, cartelização do mercado – associada à péssima situação financeira do Grupo Ipiranga Petróleo, um dos maiores do Brasil, que está à venda sem encontrar comprador – joga luzes sobre um mercado complicado, o de combustíveis, no qual não há bandidos de um lado e mocinhos de outro. ISTOÉ teve acesso a fitas gravadas e a documentos que mostram um conluio entre o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis (Sindicom) e membros da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e da Ipiranga Petróleo, com o objetivo de provocar megaoperações de fiscalização contra os postos de gasolina e distribuidoras de menor porte, o que neste momento está acontecendo em São Paulo. A operação, travestida de defesa do consumidor, de acordo com as denúncias encaminhadas a ISTOÉ, teria objetivos bem menos nobres: brecar o crescimento das empresas menores, que praticam preços mais baixos, manter ou aumentar o controle das grandes sobre o mercado – do qual ainda detêm hoje 85% – e melhorar a situação econômica da Ipiranga, que teve os postos com sua bandeira preservados da presença dos fiscais, para que suas ações sejam valorizadas às vésperas de uma possível venda para a estatal do petróleo venezuelana, a PDVSA.

Não que as pequenas distribuidoras sejam os mocinhos da história. Longe disso. Há, entre as pequenas, um pouco de tudo – de sonegação a adulteração. Mas as grandes não são as mocinhas: usam as mesmas práticas, têm um histórico de cartelização de preços e respondem por denúncias de sonegação fiscal e adulteração. Só um exemplo: a Esso garantiu, através de liminar, imunidade para o pagamento da Cofins, deixando de recolher aos cofres públicos, desde 1999, uma cifra que ultrapassa a casa dos bilhões de reais.

Por quase um ano, 22 empresas distribuidoras de combustíveis e 21 da área de solventes foram espionadas pela empresa americana Kroll Associates Brasil, contratada pelo Sindicom – que representa as grandes empresas do setor, como Shell, Esso, Texaco, Ipiranga, Agip e BR – a um custo de R$ 490 mil, segundo conversas gravadas entre dirigentes do grupo. A Ipiranga domina, de fato, o Sindicom – que funciona em salas do grupo – e, na prática, utiliza recursos públicos para defender seus interesses, já que a maior parte do dinheiro que sustenta o sindicato provém da BR Distribuidora (da Petrobras), que pouco uso faz do Sindicom.

A espionagem da Kroll resultou em um amplo relatório que foi entregue em 8 de março de 2002 ao vice-presidente do Sindicato, Alísio Jacques Mendes Vaz. Mas houve também contra-espionagem, e ISTOÉ obteve algumas dessas gravações. Numa das fitas há uma conversa entre os diretores do sindicato, Paulo Chaves Borgerth Teixeira e César Guimarães, em que eles denominam o contrato com a Kroll de “projetos de espionagem A e B”. As gravações mostram que os dois acertaram com o vice-presidente da Ipiranga, Alísio Jacques Mendes Vaz, como a espionagem seria conduzida.

Reuniõezinhas – Em outra conversa gravada, Guido Silveira, diretor da Ipiranga e do Sindicom, fala sobre propina com Jorge Luiz Oliveira, também do Sindicom. Na ligação, eles citam o pagamento de uma mala de dinheiro para mudar o relatório da CPI dos Combustíveis. Em outra das fitas, Luiz Emílio Freire, diretor do Sindicom, conversa com Carlos Maligo, analista da ANP, combinando encontro para estudar a edição de nova portaria de dutos, terminais e gasodutos, e acertam “umas reuniõezinhas especiais” para tratar do assunto.

O relatório da Kroll, nas suas 174 páginas, apresenta um detalhado trabalho. Utilizando-se de infiltração de seus agentes nas pequenas empresas distribuidoras, ela teve como alvo principal da espionagem as empresas que estavam demandando maior volume de combustível das refinarias, de acordo com informações confidenciais obtidas junto à ANP. Para justificar as ações contra as pequenas distribuidoras, o Sindicom e a Fecombustíveis apontam a adulteração da gasolina como principal argumento. Mas, na realidade, outros interesses estão por trás desse pano de fundo: a isenção de algumas taxas e tributos pelas pequenas distribuidoras, o crescimento de outras e o preço baixo estavam incomodando as grandes.

Só para se ter uma idéia de como a adulteração não é exclusiva de algumas pequenas: em 10 de fevereiro, o Posto Carrefour, de bandeira Ipiranga, no Jardim Aquarius, em São José dos Campos, teve suas bombas lacradas e foi interditado pela polícia por venda de gasolina batizada. Há inquérito policial aberto. Mas, ao contrário de ações contra postos ligados às pequenas, quando a divulgação é maciça o caso foi abafado.

Cartel – Em janeiro, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, recebeu no Palácio dos Bandeirantes representantes do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo de Campinas e Região (Recap), que cartelizam os preços em sua região, e da Fecombustíveis. Ambos defendendo os interesses do Sindicom. Entre os “defensores da moralidade” ouvidos por Alckmin estava Gil Siuffo, presidente da Fecombustíveis, incurso nos artigos 171 (estelionato) e 299 (falsidade ideológica) do Código Penal. Ele foi denunciado em 6 de agosto do ano passado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro pela venda, em 1997, de um posto de gasolina na Barra da Tijuca, cercada por irregularidades.

Perante Alckmin, o grupo manifestou apoio total ao projeto de lei enviado à Assembléia pelo governador dispondo sobre medidas de combate à
adulteração de combustíveis, aprovado em 12 de abril. A proposta, draconiana segundo especialistas, pode não prevalecer porque a competência para legislar sobre a matéria é da União, e não do Estado. A Lei nº 11.929 prevê medidas complicadas, como o fechamento não só do posto onde foi constatada a irregularidade, mas de toda a rede da empresa, além da distribuidora e da transportadora. As menores são o alvo.

O interessante disso tudo é que o relatório da Kroll encomendado pelo Sindicom manifesta, exatamente, a necessidade desse tipo de operação. Na página 171 é recomendada a formação de uma força-tarefa integrada por policiais e fiscais para ações junto às pequenas distribuidoras e seus postos. “Um dos fracassos das políticas implementadas até a data tem sido a falta de uma atuação integrada entre o Fisco e as forças policiais”, destaca o texto da Kroll. O relatório sugere ao Sindicom uma mobilização junto ao governo estadual para “a formação de ‘um grupo de intocáveis’ com autonomia jurisdicional, acesso às fontes de informação, recursos de ambas as forças (polícia e Fisco) gozando de requisito de sigilo de informações e dotado de recursos simbólicos e material suficiente”. O documento ressalta que, para auxiliar os “intocáveis”, a Kroll deveria infiltrar seus agentes nas pequenas, inclusive nos postos, para “identificar quem é quem no ramo e estabelecer fontes de informação em diferentes distribuidoras”. Os “intocáveis” cuidariam de espionar exclusivamente as pequenas, deixando as grandes de lado. Ou seja: o que está acontecendo agora estava sendo planejado há tempos.

Pressão – “Eles apontam: este vai morrer, e morre mesmo.” A afirmação é de João de Jesus, dono de postos há mais de 40 anos em São Paulo. Ele era proprietário de nove postos Shell e hoje lhe restam dois. João de Jesus briga na Justiça pela reabertura dos que foram fechados e ainda paga aluguel à distribuidora por um prédio de sua propriedade e que continua fechado. Ele foi uma das vítimas da pressão e do poder da multinacional com o apoio do Sindicom. O comerciante relata que por 35 anos o preço do combustível foi tabelado e que nesse período mantinha dois tipos de contrato com a Shell. O primeiro de compra e venda mercantil; o segundo, um comodato de empréstimo das bombas e tanque. Segundo João, este último levava o empresário ao abismo, pois ele, que era dono do posto, alugava o prédio para a Shell, que, por sua vez, o sublocava de volta para ele na figura de pessoa jurídica, numa operação triangular totalmente ilegal.

Com a liberação do preço, a Shell passou a induzir o dono do posto a competir no mercado, tirando sua margem de lucro. Quando o posto não conseguia aumentar a venda, a Shell saía, tirando o desconto que tinha dado, sem aviso ao dono. A Shell, para pressioná-lo, vendia combustível a R$ 1 para os outros revendedores e dele cobrava R$ 1,10. Dessa forma, a Shell conseguiu fechar sete postos dele.