Legislações de exceção e de emergência combatem o crime organizado no ápice das crises. Têm de ter datas para começar e acabar porque a sua aplicação intempestiva acaba fortalecendo as próprias organizações criminosas na medida em que esfrangalha o Estado Democrático de Direito – são exceção e não regra. Ou seja: legislações pontuais não podem se sobrepor às leis maiores, sobretudo à Constituição do Brasil, sob o risco de nos enredarmos na anomia social arquitetada teoricamente por Emile Durkheim. Ainda no campo da sociologia, diz Max Weber que a ação social tem um fim a ser atingido: ou passa pela racionalidade ou não é social. A Justiça de São Paulo acaba de dar uma lição democrática, com a finalidade de preservar o Estado de Direito e brecar a perigosa confusão da anomia, ao determinar que uma presidiária não poderá ser punida disciplinarmente (nem no campo administrativo nem no da execução de sua pena) pelo fato de se ter encontrado um telefone celular no bocal da lâmpada em sua cela. A exceção está na resolução 113 (novembro de 2003) que enquadrou a telefonia móvel como falta disciplinar grave. Pois bem, essas faltas são definidas pela Lei de Execução Penal, e tal lei não abrange celulares. Defendeu essa tese, e a presa, o advogado Antonio Teixeira de Castro Filho. Ele teve a coragem de escrever que a lei estabelece que a condenação “cerceia a sentenciada em sua liberdade de ir-e-vir, mas sua segregação não se estende ao cerceamento de sua liberdade de comunicação, sendo que tal cerceamento ultrapassa os limites fixados pela reprimenda judicial imposta à sentenciada”. A Justiça teve a coragem de preservar a racionalidade do Estado Democrático de Direito. Hipócrates escreveu que a dose de um remédio pode curar, duas doses podem adormecer, três doses podem matar. Legislações de exceção para punir também funcionam assim.

 

Antonio Carlos Prado é Editor Executivo da revista ISTOÉ

Os poderes e sua independência
Por Hélio Bicudo

A propósito das eleições para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a mídia refere-se, como se fosse a coisa mais natural do mundo, às intervenções do presidente da República para levar os seus candidatos a ocuparem o comando de ambas as casas legislativas. Ora, a Constituição Federal, em seu artigo 2º, estabelece que são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Isto quer dizer, claramente, que não se pode admitir a interferência de um poder sobre o outro, quando se trata de assuntos de sua autonomia interna.

Ao procurar impor sua vontade na escolha dos presidentes das Casas Legislativas, o presidente da República viola a sua independência e quebra a harmonia que deve existir entre os poderes. O presidente da República que age dessa maneira procede de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, praticando o crime de responsabilidade contemplado no artigo 9º, inciso 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.

Tudo isso se passa, com a submissão dos deputados e senadores, ávidos em ganhar o apoio do chefe do Executivo, a eles se entregando e, assim, desvirtuando os limites do mandato para o qual foram eleitos.

Falta pudor e espírito público aos candidatos e ao presidente uma apreciação ética de uma conduta que, na prática, reforça o caudilhismo de que a sociedade brasileira não consegue se livrar, mercê de uma legislação que não procura resguardar o princípio democrático advindo do Iluminismo, mas que até hoje se impõe como a única forma de governo democrático, onde a atuação dos poderes se equilibra segundo pesos e contrapesos, a impedir – o que hoje desejam o Executivo e boa parte do Legislativo – a submissão de todos à vontade discricionária do presidente. Uma reação se impõe, em nome do Estado democrático de direito.

Hélio Bicudo é presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos
Direitos Humanos

Deu a louca no governador?
Por Leonardo Attuch

Bill Gates, homem mais rico do planeta, decidiu investir em etanol. Larry Page e Sergei Brin, os bilionários donos do Google, já vieram aqui com idéia parecida. Jeb Bush, ex-govenador da Flórida, pretende convencer os 34 países das Américas a adicionar 10% de álcool à gasolina. E Charles Vest, presidente emérito do célebre Massachusetts Institute of Technology, o MIT, diz que o Brasil – e em especial São Paulo – deve se esforçar para ter um centro de pesquisas que seja referência em “agroenergia”. O fato é que as grandes cabeças do mundo, atentas ao aquecimento global e cansadas da dependência do Oriente Médio, hoje só pensam em etanol. Seria de se esperar, portanto, que as autoridades de São Paulo, Estado que responde por 64% da produção nacional de 17 bilhões de litros, festejassem a oportunidade histórica. A ducha fria, porém, veio na quarta-feira 10, quando o prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, espalhou pela internet que o novo governador paulista, José Serra, estaria pensando em cobrar royalties sobre a produção de etanol. O motivo? Efeitos “devastadores” que a cultura da cana estaria causando, segundo Serra, ao seu Estado.

A reação inicial de quem leu a notícia foi de espanto. Só que Serra não desmentiu. E depois soube-se que ele, de fato, fez tal afirmação durante uma reunião com os outros três governadores do Sudeste. É preciso lembrar a Serra o fato de que, só no ano passado, o setor sucroalcooleiro exportou US$ 7,7 bilhões. E ainda que royalties só são cobrados de patentes, da propriedade intelectual ou de atividades extrativistas, como a mineração ou o petróleo. Querer agora tributar um setor que fez o Brasil ser invejado no mundo inteiro seria uma tremenda insanidade. José Serra pode até achar que seus planos para São Paulo não cabem no seu orçamento de R$ 80 bilhões. Mas não venha matar a galinha dos ovos de ouro.

Leonardo Attuch é Editor da Istoé Dinheiro e da Dinheiro Rural

Lula e as elites
Cláudio Camargo

Sempre que se sente acuado por críticas, como no caso do escândalo do mensalão, o presidente Lula diz que seu governo é vítima de uma suposta “conspiração das elites”. Despropositada, diz o presidente, porque segundo ele os ricos “ganharam dinheiro como nunca” no seu primeiro mandato. De fato, uma ingratidão. Em compensação, a nata da sociedade latino-americana considera Lula o segundo melhor líder da América Latina, atrás apenas da chilena Michelle Bachelet, de acordo com uma pesquisa encomendada pela revista americana Newsweek. Elaborado pela Zogby International, o levantamento ouviu centenas de empresários, políticos, intelectuais e jornalistas latino-americanos. Mas o dado mais curioso revelado por essa pesquisa é que a elite brasileira, ainda que queira ver Lula pelas costas, está bastante otimista quanto ao futuro: nada menos que 89% crêem que a economia do País crescerá bem mais nos próximos dois anos. Nem mesmo as Polyanas de plantão do governo brasileiro estão tão otimistas.

Somos um país bipolar, para usar a palavra da moda. Num dia, acreditamos que estamos à beira do abismo, que nossos políticos são os mais corruptos do mundo e que somos um povo indolente, que aceita viver refém da violência, mas que no final permite que tudo acabe em pizza ou Carnaval. No outro dia, nos regozijamos por sermos um povo alegre, generoso, trabalhador e esperançoso e que vive num país maravilhoso, apesar das imensas dificuldades e iniqüidades. Na verdade, o brasileiro ainda é o “homem cordial” – dominado pelas emoções, avesso à dimensão racional e à distinção entre público e privado – de que falava Sérgio Buarque de Hollanda. Assim, por estranho que pareça, Lula e a elite brasileira têm muito mais em comum do que supõe nossa vã e racional filosofia.

Cláudio Camargo é Editorialista da revista ISTOÉ