O consultor Sérgio Nogueira, autor de oito livros sobre a língua portuguesa, dá suas dicas para preservar o idioma

O professor Sérgio Nogueira usa os meios que pode para disseminar o uso correto da língua portuguesa. É autor de oito livros sobre o assunto, discute o tema em um programa na TV Senac e numa coluna de jornal, é consultor de empresas e atua como supervisor de linguagem em vários veículos de comunicação. Crítico feroz do uso de estrangeirismos desnecessários, mora num condomínio carioca chamado, por ironia, de Greenwood Park. ?Levo isso na esportiva, fazer o quê??, resigna-se. Com humor, ele consegue explicar os mistérios da língua de forma surpreendentemente clara. Seus principais alvos são os modismos e os estrangeirismos. ?E existem também os bobismos?, diz, para identificar a utilização de palavras oriundas da informática para substituir termos existentes no vocabulário. De uma maneira geral, o professor ? um gaúcho de 56 anos que se formou em letras pela UFRGS e fez mestrado na PUC do Rio de Janeiro ? prega a liberdade no uso da língua. Mas não vê apenas prejuízos no internetês, o dialeto usado na rede, que as escolas tanto condenam. ?Ele trouxe ensinamentos que seria interessante os professores perceberem.?

ISTOÉ – Qual a principal praga que ataca a língua portuguesa nos nossos dias?
Sérgio Nogueira

Temos problemas de construção de frases, de vocabulário, de falta de conhecimento, de modismos e, obviamente, problemas gramaticais.
Mas isso tem menor importância. Prefiro um texto com erro, um acento mal posto, do que aquela frase incompreensível. Na comunicação, a qualidade
maior é fazer-se entender.

ISTOÉ – Qual dessas pragas prejudica mais?
Sérgio Nogueira

Fatos lingüísticos que empobrecem nosso vocabulário. Qual foi o maior modismo dos últimos 20, 30 anos? O “a nível de” foi, sem dúvida nenhuma, o campeão. Eu tinha esperança de que já estivesse morto e enterrado, mas é impressionante como ele se revitaliza, vai e volta. O “a nível de” tem um problema sério: não nasceu nas classes menos privilegiadas, não nasceu no morro, nasceu na sala de executivos.

ISTOÉ – Como assim?
Sérgio Nogueira

Quem usa “a nível de” não fala de cabeça baixa. Faz pose, como se usasse uma língua superior. Na verdade, não há uma situação sequer em que essa expressão seja adequada. O “a nível de” não se refere a nível de coisa nenhuma.

ISTOÉ – Os dicionários conseguem acompanhar a mudança da língua?
Sérgio Nogueira

Veja a palavra multagem. Quem trafega pela Linha Amarela, uma via expressa do Rio de Janeiro, viu uma placa que incomoda muita gente: “Multagem eletrônica.” Eu já recebi várias cartas de pessoas que querem saber se a palavra existe. Na cabeça das pessoas existir é estar no dicionário. Como se o dicionário decidisse quem nasceu ou não nasceu. É preciso lembrar que os dicionários
nunca estão atualizados.

ISTOÉ – Quem dá vida às palavras é a sociedade?
Sérgio Nogueira

Exatamente. Você não encontra “seqüestro-relâmpago” nos dicionários, mas ninguém vai me dizer que não existem seqüestros-relâmpago. É o caso de potencializar, agilizar, disponibilizar, criações bem brasileiras. Gostamos desses verbos em “izar”. Se a maioria dos falantes usar, o dicionarista registra.

ISTOÉ – O sr. se incomoda muito com os estrangeirismos?
Sérgio Nogueira

O problema é que o brasileiro gosta tanto de estrangeirismo que usa até quando não precisa. Se você traz um estrangeirismo novo que enriquece o vocábulo, nada demais. O problema do inglês nos últimos tempos é que ele entrou como uma praga, devido ao poderio econômico e tecnológico e não à beleza da língua inglesa. Sou moderado. Não tenho nada contra estrangeirismo, mas acho que há muito exagero. Se posso falar futebol de areia, não falo beach soccer.

ISTOÉ – Modismos não servem para encobrir o pequeno domínio da língua?
Sérgio Nogueira

Em grande parte sim. Há palavras de sentido genérico usadas para substituir tudo. Hoje ninguém muda, altera ou inverte. Tudo se reverte. Se você vai mudar alguma coisa, vai reverter a situação. E geralmente se diz reverter o quadro, seja político, econômico, de saúde. Todo mundo reverte, seja o placar ou a decisão na Justiça, o que é absurdo, porque reverter é voltar à decisão anterior. Uma decisão judicial é anulada e não revertida. No momento, o pior de todos é definir. Hoje em dia ninguém estabelece, ninguém determina, ninguém prevê. Tudo se define.

ISTOÉ – Isso é ruim?
Sérgio Nogueira

É antes de tudo um empobrecimento, porque a certa altura esse processo faz com que palavras conhecidas adormeçam. Nós temos um vocabulário ativo e um passivo. Vocabulário passivo é aquele que você entende quando lê, mas que não usa ao falar ou escrever. No jornalismo, por exemplo, se diz muito que o PT definiu candidato, o PMDB definiu candidato, o PP definiu candidato. Gente, um escolheu, outro elegeu e o outro indicou. Há também o famigerado colocar. Uma vez, um aluno levantou o dedo e me perguntou: “Professor, posso colocar uma coisa?” Eu disse: “Opa… Colocar em mim não.”

ISTOÉ – O sr. já se referiu também ao termo diferenciado…
Sérgio Nogueira

Esse modismo surgiu no meio esportivo. Jogador diferenciado seria melhor que os outros. Depois, passou a ser usado para tudo. Diferenciado não é obrigatoriamente positivo, mas a palavra é usada de forma desmedida com essa carga. Uma pessoa ou algo pode ser diferenciado também pelo lado negativo. É o atributo de ser diferente, não necessariamente para melhor.

ISTOÉ – E o gerundismo?
Sérgio Nogueira

O gerundismo nasceu no telemarketing, provavelmente de uma tradução literal do inglês, onde existe, por exemplo, o “we’ll be sending”, ou “vamos estar enviando”. Em português o gerúndio é diferente, porque as línguas não são iguais. Na nossa língua, o gerúndio sempre dá idéia de continuidade de ação. Outro dia, dei uma palestra em São Paulo e dois dias depois me ligou a secretária do evento: “Professor, à tarde vamos estar depositando o seu dinheiro.” Vamos estar depositando? Não resisti: perguntei se o depósito ia ser feito em moedinhas. Entendi que ela ia passar a tarde toda depositando o meu cachê.

ISTOÉ – O gerundismo talvez tenha nascido para que as empresas evitassem fixar um prazo de atendimento ao cliente…
Sérgio Nogueira

Isso, uma prova do descomprometimento. Se alguém me disser que vai estar resolvendo, posso ter certeza de que não vai resolver coisa nenhuma. A solução para isso é usar o futuro. Se alguém disser “resolverei o seu problema” ou “vamos resolver o seu problema” é mais incisivo.

ISTOÉ – O que acha do internetês, esse vocabulário virtual da rede?
Sérgio Nogueira

Muita gente critica, mas ele tem um ensinamento que é interessante os professores perceberem. Primeiro, é bom lembrar que é uma linguagem puramente escrita, ninguém fala daquela forma. Nem a garotada. Eles não saem por aí falando pq, vc, tc… Só escrevem para agilizar a digitação. Segunda coisa: é uma convenção que não precisa de gramática. Não precisa ter um livro para dizer que pq é porque e vc é você. Todo mundo usa e eles não combinaram isso. Olha que coisa interessante. Como nós não combinamos que foto ia abreviar fotografia e não fotossíntese. Ninguém combinou que moto ia abreviar motocicleta em vez de motosserra. A imagem que alguns alunos levam da escola é que a língua tem que seguir a gramática, quando na verdade ela é que

ISTOÉ – E o lado negativo?
Sérgio Nogueira

Quando a pessoa foge do sistema formal de escrita, não está dando a si um dos elementos para aprender ortografia, que é a memória visual. Você não sabe ortografia por regra, mas por memória. O perigo é a garotada criar uma memória irreversível. A gente não deve se escandalizar com o internetês. O professor deve aproveitar essa realidade que encanta a garotada e trazer para a sala de aula. Não para que o aluno faça a redação assim, mas para ensiná-lo a traduzir o internetês para a língua padrão.

ISTOÉ – Os termos vindos da informática já estão incorporados à língua?
Sérgio Nogueira

Acessar, por exemplo, não tem pecado nenhum, até porque temos a palavra acesso há muito tempo. A restrição é quanto ao uso. Se você diz que vai acessar um programa ou acessar dados, tudo bem. Mas acho totalmente inadequado o uso que ouvi de um motorista de táxi. Ele disse que iria acessar a avenida, no sentido de entrar. Na verdade, ele vai ter acesso. Ninguém diz que um time vai acessar o campo. O time entra. O presidente não acessou a tribuna de honra. Teve acesso.

ISTOÉ – E deletar?
Sérgio Nogueira

Acho que está incorporado. Mas, na minha opinião, deve ser usado em textos de informática. Deletar é um tipo especial de apagar. Se eu uso uma borracha, eu apago, como sempre fiz. Agora, se estou usando o computador e pressiono a tecla “del”, eu deleto. Me incomoda o uso em sentido figurado. Imagine uma manchete de jornal: “Policial deleta marginal.” Só os sensacionalistas. Mas há também o que eu chamo de bobismo. Printar, por exemplo. Eu imprimi a vida inteira, porque vou printar agora? Para que startar, se eu comecei a vida toda?

ISTOÉ – O que acha dos ativistas que defendem parâmetros politicamente corretos para a língua?
Sérgio Nogueira

É discutível. Alguns casos são ridículos, como usar “prejudicado vertical” para pessoas de baixa estatura. No caso de aidético, trocar por soropositivo é razoável. Evita-se também o leproso.

ISTOÉ – O sr. costuma destacar também os termos judiar e denegrir…
Sérgio Nogueira

Essas substituições são para atender a comunidade judaica e o movimento negro. Nesse caso, fazemos porque é fácil trocar judiar por maltratar e denegrir por manchar. Mas tenho a forte impressão de que a maior parte dos leitores não tem noção de que denegrir vem de negro e judiar vem de judeu. Acho que os ativistas algumas vezes exageram. O que pesa para a palavra ou a frase ser racista é a entonação, o contexto, a intenção.

ISTOÉ – Os brasileiros continuam lendo pouco?
Sérgio Nogueira

Não lêem nem jornal. O estudante de comunicação inclusive. Uma amiga que é professora de medicina me mostrou a prova de um aluno de segundo ou terceiro período que escrevia paciente com “sc”. Fico imaginando o que esse rapaz está lendo para ser médico. Não consegue nem escrever uma palavra da sua área. Isso é inadmissível.

ISTOÉ – Quais as conseqüências desse déficit de leitura?
Sérgio Nogueira

Primeiro, falta de conteúdo. Depois, o vocabulário fica pequeno. A pessoa não consegue ver todas as possibilidades. Há também o problema da construção das frases. A garotada acredita que pontuar é um problema respiratório, não sabe pontuar e por isso cria frases que ninguém entende. Alguns professores passam essa idéia, que não é correta. Você respirar onde tem a vírgula na hora da leitura é uma coisa; agora você pôr a vírgula onde respira é mentira. Se fosse assim, o cara que sofresse de dispnéia colocaria uma vírgula atrás da outra e o mergulhador não poria nenhuma. Não é uma questão de capacidade respiratória.