RICARDO STUCKERT

Diante dos jornalistas que cobrem o dia-a-dia do Palácio do Planalto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi enfático: “O Brasil não pode brincar com uma coisa chamada democracia”, disse ele, na segunda-feira 5. “Acho que é insensato qualquer pessoa ficar discutindo aumentar para um terceiro mandato.”

O fascinante nas reiteradas manifestações sobre o tema não está na efetiva possibilidade de Lula vir a ter o direito de disputar um terceiro mandato. O que interessa agora é tentar entender a questão central desse debate. Toda a ansiedade dos políticos, na verdade, se origina numa dúvida bem mais simples e ao mesmo tempo mais complexa do que qualquer mudança constitucional.

Como será o Brasil sem Lula?

Esse é o ponto.

Sua simplicidade está em saber que no dia 1º de janeiro de 2011, uma provável manhã de chuva em Brasília, alguém cruzará a passarela de mármore branco que liga o Salão Leste do Palácio do Planalto ao Parlatório e, diante da multidão abrigada na Praça dos Três Poderes, irá se curvar suavemente para que Lula deposite sobre seu ombro a faixa presidencial.

A complexidade dessa mudança reside no fato de que, ao contrário de todos os grandes episódios que marcaram os últimos 25 anos, ninguém sabe qual o melhor roteiro para que isso aconteça. Porque se existe algo facilmente constatável na história recente do País é que o período que se convencionou chamar de redemocratização brasileira está indissociavelmente ligado a Luiz Inácio Lula da Silva. É como se um não tivesse podido existir sem o outro. E agora que os dois colhem os frutos da normalidade constitucional, da estabilidade econômica e da redistribuição de renda, marchando assim para o seus melhores momentos, vivem paradoxalmente a certeza de que o tempo de ambos está chegando ao fim.

Foi o lento e gradual processo de redemocratização, iniciado com o renascimento do movimento operário e as greves do ABC em 1977 e engrossado com a anistia e o pluripartidarismo em 1979, que levou Lula ao PT – e vice-versa. E, a partir daí, Lula e seu PT (ou vice-versa) oscilaram ora como ameaça de retrocesso, ora como garantia da democratização do País. Mas foram sempre peça-chave desse processo, incluindo as muitas ocasiões em que se manifestaram pela ausência, como na tentativa de Itamar Franco de fazer um governo de união nacional ou, antes, na eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney.

Lula é maior que todos os outros protagonistas da redemocratização porque só ele conseguiu interpretar, por duas décadas, o duplo papel de tese e antítese – o Lula e o anti-Lula. Esse personagem contraditório, que representa ao mesmo tempo o que ele diz e o que se diz dele, mostrou seu poder ambivalente no segundo turno da disputa presidencial de 1989.

A própria figura do segundo turno, é bom lembrar, foi aprovada na Assembléia Nacional Constituinte pelo temor de que Leonel Brizola ou Lula faturassem a primeira eleição para presidente depois da ditadura. Era uma aposta conservadora que rompeu com a tradição eleitoral brasileira para que, nos pleitos seguintes, se mostrasse não apenas uma providencial barreira contra aventureiros como também um elemento garantidor da estabilidade do jogo democrático. Com o segundo turno, a elite nacional emitiu o primeiro sinal de que Lula e seu PT (ou vice-versa) eram paradoxalmente vistos como uma ameaça e uma garantia à democracia e à ordem constitucional.

E então, na disputa de 1989, Lula ganhou a dualidade definitiva. Fernando Collor levou de fato o primeiro turno, mas quem o colocou no Palácio do Planalto foi o anti-Lula – o medo, capaz de convencer a maioria de que o candidato do PT poderia promover, em parte ou no todo, a insegurança jurídica, o caos econômico, o autoritarismo político e o fim do direito à propriedade.

O risco Lula garantiu a posse de Itamar Franco e foi o anti-Lula a pedra de toque do Plano Real, que fez o Brasil alcançar a estabilização econômica

Havia, claro, o fato de que, na Constituinte, o PT e seus apêndices (pastorais de toda sorte, povos da floresta, sem-terra e afins) retardaram o desenvolvimento do País ao ajudar a escrever o anacrônico capítulo da ordem econômica. Mas também é verdade que, como ficou provado no caso Miriam Cordeiro, havia o que Lula falava e o que se falava dele.

Curiosamente, o segundo turno de 1989 revelou, na prática, que a resistência a Lula servia também de fonte de seu poder. Foi o segundo turno que lhe deu a estatura de maior líder de oposição e fez do PT alternativa real de governo. Em grande parte, o impeachment de Fernando Collor, por exemplo, só foi possível graças à esperança mobilizadora de uma revanche empreendida por Lula e seu PT. A normalidade constitucional com que se processou o impeachment é fruto da ameaça que essa revanche significava para a dominante fatia conservadora do Congresso brasileiro. O risco Lula garantiu a posse de Itamar Franco e foi o anti-Lula a pedra de toque do Plano Real, que fez o Brasil alcançar a estabilização econômica.

A enorme aliança política em torno de Fernando Henrique Cardoso existiu apenas porque o prazo para se criar uma candidatura alternativa a Lula era pequeno e o atual presidente era o franco favorito em 1994. Mesmo tendo todos os méritos de ter debelado a hiperinflação no Brasil, Fernando Henrique só conseguiu aprovar a idéia da reeleição, na sociedade e no Congresso, porque nela estava embutida uma forte ação anti-Lula. A reeleição, como o segundo turno, era prova de que Lula e o PT ainda representavam uma ameaça tanto quanto uma garantia à democracia. E, como ocorrera antes com o segundo turno, demonstrou ser uma medida de fortalecimento da estabilidade democrática, ao mesmo tempo que reforçava o poder e a liderança de Lula.

O PT e seu candidato entenderam essas mensagens quando apresentaram a “Carta aos Brasileiros” em 2002. Por mais contraditório que possa parecer, os 13 anos em que quase chegaram lá propiciaram a Lula e seu PT (ou vice-versa) o aprendizado para virar o jogo dentro das regras. Numa época em que os mercados internacionais tinham se sobreposto aos capitães da indústria, Lula apresentou-se como a conseqüência lógica dos anos FHC, enquanto José Serra parecia o anti-Lula do passado.

Serra vestiu por completo o figurino de anti-Lula não apenas pelo que se dizia dele, mas pelo que ele mesmo dizia, com suas críticas à valorização da moeda nacional, aos juros extorsivos e por um certo pendor, ao menos entre integrantes de sua equipe, ao controle de capitais. Além disso, a partir da passagem pelo Ministério da Saúde, ele explicitara algum gosto pela intervenção no mercado e pela forte regulação de preços.

Dentro de alguns anos, quando os historiadores forem escrever o capítulo da redemocratização brasileira, Lula estará indissociavelmente ligado ao seu melhor momento. E também ao final dela porque, ao contrário da Espanha, que promoveu seu pacto político, econômico e social numa só tacada, quis a nossa história que esse processo fosse construído em etapas distintas e bem marcadas. Com a morte de Tancredo Neves, José Sarney herdou o compromisso de institucionalizar o poder civil. Era um tema a ser encerrado com a promulgação da Constituição. Mas do excesso de ele ter permanecido um ano além da sua responsabilidade histórica é que 1989 é o pior ano da redemocratização.

Coube a Collor reorientar uma bússola econômica desvirtuada por uma Constituinte realizada antes da queda do Muro de Berlim. Tinha a missão histórica de debelar a hiperinflação, mas os desmandos de seus amigos e ministros falaram mais alto. Itamar provou ser a vitória da normalidade constitucional sobre a tradição brasileira e Fernando Henrique conseguiu enfim estabilizar a economia. A Lula coube manter tudo isso e retomar o desenvolvimento com distribuição de renda.

A geração pós-ditadura encerra com o segundo mandato de Lula o seu ciclo histórico com um vitorioso retrospecto de liberdades civis, segurança jurídica, abertura, estabilização e crescimento, além dos dois maiores benefícios: distribuição de renda e redução da pobreza. Aquilo que agora suscita incerteza na classe política – o que será do Brasil depois de Lula? – deveria ser motivo de regozijo para o presidente. Raríssimos são os personagens mundiais que, tendo nascido por conta de circunstâncias políticas particulares, puderam crescer com elas, chegando ao final do processo no auge da popularidade. Insistir no terceiro mandato é interromper esse ciclo virtuoso e diminuir o papel histórico de Lula e seu PT (ou vice-versa). Depois deles, o Brasil estará mais maduro – e melhor.