"É um pouco traumático encontrar, repentinamente, um nordestino que, além de comer tapioca, cuscuz e carne de sol com macaxeira, faz um kidushizinho – cerimônia religiosa judaica celebrada com vinho – com cachaça, e chama a si mesmo de cristão-novo ou judeu.” Quem diz isso em tom de ironia é o policial Odmar Braga, poeta pernambucano negro que assumiu sua identidade judaica. Ele é um dos personagens do documentário A estrela oculta do sertão, com estréia no dia 1º de maio, às 18h30, no Clube Hebraica, em São Paulo, seguindo depois para Rio de Janeiro, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre e Nova York. O filme dirigido pela fotógrafa Elaine Eiger e pela jornalista Luize Valente traz à luz um fragmento obscuro da formação do povo brasileiro. São os cristãos-novos, judeus convertidos à força à fé cristã, também chamados marranos, que adentraram o sertão e para lá levaram as tradições e costumes do judaísmo.

Lavar o corpo do morto e enterrá-lo enrolado em uma mortalha, e não dentro de um caixão, por exemplo, é uma dessas tradições judaicas repetidas tantas vezes no sertão nordestino. Dona Cabocla, nascida e criada em Venha Ver, pequena cidade no Rio Grande do Norte, repete os costumes de seus ancestrais sem se dar conta de suas origens. “Eu não quero me enterrar em um caixão. Por quê? Porque é a terra que vai comer nóis”, explica a velha senhora. Mas, na verdade, segundo Anita Novinsky, historiadora da USP e colaboradora do documentário, assim como dona Cabocla existem milhares de nordestinos que reproduzem, muitas vezes inconscientemente, tradições dos cristãos-novos originários de Portugal.

A jornada sertão afora resgata um universo rico dos descendentes dos sefaradi, judeus originários da península ibérica e do norte da África, forçados a se
converter ao catolicismo devido à Inquisição, a partir do final do século XV. O
conflito entre a Igreja e os cristãos-novos – classificação que muitos judeus repudiam – se desenvolveu na península ibérica durante três séculos e deixou
suas marcas pelo mundo. Vários dos sobrenomes brasileiros, como Carneiro, por exemplo, são de cristãos-novos portugueses. Mas não é apenas a identificação desse legado histórico que o documentário revela. Com o médico paraibano
Luciano Oliveira, que também decide resgatar sua história familiar, o filme levanta
a polêmica ao questionar se esses descendentes de cristãos-novos têm ou não direito de serem convertidos ao judaísmo. De maneira sutil, a polêmica perpassa
os judeus ortodoxos de São Paulo. É uma bela reflexão sobre o preconceito, a fé
e a tolerância no judaísmo.


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