Nem só o argentino César de la
Cruz Mendoza Arrieta e 12
pessoas de seu grupo dançaram na
Operação Tango, detonada pela Polícia Federal em 11 de abril, em Porto Alegre. Condenado por um dos maiores golpes da história da Previdência, Arrieta é acusado de comandar uma das dezenas de quadrilhas dedicadas à venda de precatórios e outros títulos falsos utilizados no pagamento de dívidas e tributos do INSS e da Receita Federal. Com a prisão de Arrieta, o Ministério Público, a Receita Federal, a Corregedoria da República e a PF acabaram descobrindo que o grupo mantinha ligações com funcionários públicos e até com bancos. Nas investigações, surgiram os nomes dos bancos Modal e BVA, do Rio de Janeiro, quando a PF encontrou documentos comprovando que a Vale Couros Trading S.A., uma das empresas controladas pelo grupo de Arrieta, movimentou R$ 1,560 bilhão nas duas instituições. Quase toda a bolada transitou pelo Modal: R$ 1,550 bilhão.

Além do Modal e do BVA, um outro banco mais famoso está no foco das investigações: o Banco Santos, de Edemar Cid Ferreira. Ele comprou a massa falida da Vale Couros na tentativa de maquiar seu balanço e evitar a liquidação do banco. Na quinta-feira 28, a PF indiciou Edemar por envolvimento em crimes contra o sistema financeiro (gestão fraudulenta e formação de quadrilha). Segundo a PF, que também indiciou 12 funcionários e diretores dos três bancos, quando Edemar comprou a Vale Couros – em junho do ano passado – ela possuía créditos tributários estimados em R$ 436 milhões. A empresa do argentino já era investigada há dois anos pela Receita.

De olho na ciranda financeira de Arrieta, a PF descobriu que, além do R$ 1,5 bilhão, foram movimentados no BVA mais R$ 7,5 milhões. A bolada ficou nos dois bancos (Modal e BVA) entre maio e junho de 2004 e era originária do resgate de CDBs comprados no mercado pela Vale Couros. O Modal era o responsável pela guarda desses papéis até o resgate.

Documentos mostram ainda que os bancos usaram créditos podres, obtidos pela Vale Couros, para quitar impostos federais por meio da chamada Per-Dcomp, um formulário eletrônico encontrado no site da Receita que, até março deste ano, permitia a quitação instantânea de impostos federais com créditos tributários. Por esse mecanismo, qualquer contribuinte conseguia compensar eletronicamente vários impostos da União com créditos tributários. Tão logo a Per-Dcomp era homologada pelo sistema, as dívidas, dadas como quitadas, sumiam do sistema, ainda que ficassem sujeitas à fiscalização posterior. Embora a lei só permita a utilização de créditos de origem tributária para pagamento de impostos, os fraudadores conseguiam apagar do sistema dívidas com todo tipo de moeda podre: títulos públicos vencidos, ações judiciais ainda em tramitação na Justiça e precatórios fraudulentos, fabricados em cartórios.

Falha no sistema – Em março deste ano, a Receita mudou o sistema, que passou a admitir a quitação de impostos com créditos e títulos judiciais somente após a análise dos auditores. Segundo a legislação, só podem ser compensados débitos tributários originados de processos tributários após julgados em todas as instâncias. E proíbe que o crédito de um contribuinte seja usado para quitar débitos de terceiros. As quadrilhas de sonegadores, no entanto, não demoraram a perceber que, devido a uma falha no sistema de compensação, conseguiam facilmente apagar dívidas com todo tipo de precatório e moeda podres. O BVA pagou por meio de seis Per-Dcomp R$ 10 milhões de débitos de IR com os títulos da Vale Couros. O mesmo mecanismo foi utilizado pelo Modal, que conseguiu quitar uma dívida de impostos ainda maior: R$ 59 milhões. A transação lhe valeu uma multa da Receita superior a R$ 100 milhões. Para a PF, o MP e a Receita, a transação é irregular porque a ação não julgada em definitivo está longe de virar um crédito tributário, já que não houve nem mesmo a execução da dívida.

Uma circular interna da Receita, à qual ISTOÉ teve acesso, mostra que desde agosto do ano passado a Coordenação-Geral de Administração Tributária se mostrava preocupada com o golpe. De acordo com o documento, o derramamento de títulos podres está concentrado nas mãos de poucos. O grande rombo das Per-Dcomp fraudulentas foi praticado pelo empresário paulistano José Roberto Fernando Beraldo, que usou o programa eletrônico para converter um precatório fantasma do Paraná, do século XIX, em um crédito tributário de R$ 3,8 bilhões. “Trata-se de uma tentativa espúria de arrancar dos cofres da União bilhões de reais”, diz a circular. Descobriu-se, ainda, que a fraude está concentrada em São Paulo. Por isso, o corregedor-geral da Receita, Moacir Leão, determinou uma devassa em todas as Per-Dcomp lançadas no Estado. “A fraude mostra que a Receita não pode criar medidas facilitadoras para o contribuinte, sem a adoção de medidas de segurança”, disse Leão.

Os documentos mostram também que a quadrilha de Arrieta não media esforços para cooptar servidores. No centro das investigações está o o auditor fiscal Ivan Pereira da Cunha, ex-xerife da Receita de Porto Alegre. Ele comandou por mais de dez anos a Delegacia Fazendária do Rio Grande do Sul e foi afastado do cargo no final do ano passado. A corregedoria instaurou inquérito administrativo contra ele e outros oito servidores. A investigação foi motivada por documentos que comprovam que o grupo de Arrieta custeou pelo menos R$ 50 mil em despesas médicas do irmão de Ivan, o caminhoneiro Emiram Pereira da Cunha. Em 2002, Emiram foi baleado ao ser assaltado na Argentina. Ele foi transportado para Brasília por um jato da Líder Táxi Aéreo em 22 de novembro de 2001, na companhia do empresário Roberto Coimbra Fabbrin, preso como integrante da quadrilha de Arrieta. Conforme os documentos, o aluguel da aeronave (R$ 35 mil) foi pago pela empresa SRS Consultoria, de propriedade de Sônia Soder, mulher de Arrieta, também presa durante a Operação Tango. Os papéis comprovam, ainda, que a Vale Couros pagou R$ 15 mil pela internação do caminhoneiro na Clínica Santo Antônio, em Brasília. As pistas seguidas pela PF foram passadas por ex-funcionários de Arrieta à deputada estadual Cidinha Campos (PDT-RJ), que há mais de dez anos investiga as atividades do fraudador.

Segundo as investigações, o delegado teria retardado a fiscalização da SRS. A denúncia é contestada pela advogada de Ivan, Denise Gomes Siqueira. De acordo com ela, não há provas que mostrem que Ivan e outros servidores receberam ajuda do grupo de Arrieta ou que deixaram de autuar a empresa. “O Ivan só não vetou a ajuda ao irmão, que foi comunicada aos seus superiores, porque não sabia que era o Arrieta quem estava pagando”, disse. As investigações mostram ainda que o grupo do argentino começou sua atividade com o apoio de funcionários do Serpro José Augusto Rigo e Francisco Carlos Santos. Os dois trabalhavam no escritório da Receita em Santa Maria (RS) e respondem inquérito por ter fraudado certidões negativas de débito (CNDBs) que beneficiavam clientes de Arrieta.