Isabel de Fátima Mantovani, 50
anos, trabalha como auxiliar de
serviços gerais no Cemitério
Municipal Jardim das Flores, em
Cotia, na Grande São Paulo. Ganha
R$ 600 por mês. Como todo
trabalhador brasileiro, sonha com a
casa própria. Por isso, foi até uma agência da Caixa Econômica Federal para checar seus depósitos do Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e saber se poderia inscrever-se em um financiamento para compra de imóvel. E teve uma grande surpresa: descobriu que os valores que lá constavam como o seu salário eram imensamente superiores ao que sempre recebeu. Isabel ficou sabendo que ganhava oficialmente, em junho de 2004, R$ 2.780,11.

Investigação – A funcionária registrou um boletim de ocorrência na delegacia da cidade, onde foi aberto inquérito policial. O caso agora está sendo investigado pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. Ela era contratada pela Procotia (Progresso de Cotia), uma empresa mista criada pela prefeitura para contratar servidores municipais, a maioria trabalhadores braçais, com salários que, geralmente, vão de R$ 100 a R$ 600. A empresa alegou que, no caso de Isabel, teria ocorrido um erro de digitação e culpou a funcionária, que teria “o dever de fiscalizar mês a mês os valores depositados”. Normalmente, trabalhadores recebem da Caixa Econômica Federal os informes sobre o FGTS em suas residências. Na Procotia, segundo o vereador do PT Antonio Carlos Sá, o Toninho Kalunga – o primeiro a denunciar as irregularidades –, a sede da empresa constava como o endereço dos funcionários. A empresa foi extinta no último dia 18, por decisão da Câmara Municipal, oficialmente em razão de dívidas com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Assim, a prefeitura volta a responder pelas contratações.

Só em sonho – Mas o caso de Isabel não é isolado. Documentos obtidos por ISTOÉ comprovam que outros funcionários humildes, como porteiros e vigias, com salários de R$ 112 ou R$ 230 ao mês – de acordo com folhas de pagamento da Procotia –, aparecem em listas oficiais da Caixa Econômica Federal e do INSS, para os descontos do FGTS e da Previdência Social, com salários infinitamente mais elevados, muitos de R$ 8 mil, R$ 9 mil e R$ 10 mil. Em muitos casos, os descontos praticamente se equivalem aos valores efetivamente pagos aos funcionários. Outra curiosidade: nos quatro meses que antecederam as eleições de outubro de 2004, os pagamentos constantes nas listas do INSS praticamente duplicaram, voltando depois das eleições aos valores iniciais.

Depois da queixa de Isabel, feita em setembro do ano passado, surgiram vários casos semelhantes. Como o do porteiro G.S.L., que, em junho de 2004, tinha um salário-base de R$ 280 e recebeu R$ 880, com horas extras e gratificações. Na lista do INSS, seu salário naquele mês era de R$ 5,9 mil. O porteiro E.P. também tinha salário-base de R$ 280, mas aparecia, em agosto, com um rendimento de R$ 2,6 mil. “Está claro que existem duas folhas de pagamento, uma para os órgãos oficiais com os salários altos, e outra muito mais baixa. Os servidores recebiam um cartão magnético para retirar o dinheiro no caixa eletrônico, assinavam um contracheque com esse valor e não desconfiavam”, afirma Kalunga, que contatou 37 funcionários que, supostamente, recebiam altos salários. “Todos disseram que aqueles valores não eram verdadeiros e alguns forneceram os contracheques.”

Desfalque – Kalunga calcula que existem irregularidades nos vencimentos de, pelo menos, 600 dos 1.800 empregados. E o procurador da República Matheus Magnani, que deu início às investigações, avalia que o rombo pode chegar a R$ 13,7 milhões. O esquema tem grandes semelhanças com o “escândalo dos gafanhotos”, que levou à prisão o ex-governador de Roraima Neudo Campos (PP), em 2003. Lá, funcionários fantasmas e outros com salários elevadíssimos (que faziam devoluções a terceiros) corroíam a folha de salários do Estado e, por isso, eram chamados de gafanhotos. Como parece ser o caso, agora, na prefeitura tucana de Cotia. “A diferença é que os daqui não sabiam. São os gafanhotos cegos”, diz o petista.

O vereador estranha o fato de a Polícia Civil – mesmo com documentos em mãos do chamado sefip (sistema de informações emitidos por empresas para a Caixa Econômica a fim de proceder o recolhimento do FGTS) e com uma relação de salários de servidores gerais que atingiria até R$ 10 mil, caso de E. S. M., por exemplo –, não ter contestado os valores elevados. Outros dados também chamam a atenção na folha de pagamento da empresa. A ajudante administrativa Anabel Pereira da Silva – que, segundo Kalunga, é irmã do ex-presidente da Procotia Joaquim Pereira da Silva – recebia, em setembro de 2004, salário de R$ 331,20 e uma gratificação de R$ 3.060. Natalino Bispo da Silva, chefe de setor (não especificado), ganhava no mesmo período salário de R$ 345 e uma gratificação muito mais atraente: de R$ 7,7 mil. Também causa estranheza o fato de a lista do INSS, obtida por ISTOÉ, mostrar uma relação com dezenas de funcionários (cujos nomes não estão identificados) que possuiriam números de registros no PIS (Programa de Integração Social) praticamente idênticos ou com a numeração seqüencial (excetuando-se apenas os dois últimos números, dos 11 existentes), o que seria quase impossível num grupo de funcionários de uma mesma empresa.

Por tornar públicas essas denúncias, Kalunga diz temer pela sua segurança. Ele afirmou ter sido ameaçado de morte por um grupo de “perueiros” da cidade e por um desconhecido, na sede da Procotia. Um pastor evangélico também lhe informou que teria presenciado conversa de um grupo de homens, na qual estaria sendo articulado o seu assassinato. O vereador, agora, quer proteção.