Na semana passada, o governo brasileiro
arriscou sua reputação diplomática e se
envolveu numa arriscada operação para
resgatar o ex-presidente do Equador Lucio Gutiérrez, refugiado na Embaixada do Brasil
em Quito depois de ter sido afastado do cargo
pelo Congresso na quarta-feira 20, na seqüência de vários dias de manifestações nas principais cidades equatorianas. Em frente à embaixada brasileira, uma multidão jogava tomates e
ovos no edifício, protestando contra a decisão do Brasil de conceder asilo político a Gutiérrez, acusado de corrupção e abuso de poder. A decisão do governo brasileiro de atuar na crise equatoriana incomodou até a vizinha Argentina, que ultimamente anda às turras diplomáticas
com os brasileiros. Para o governo de Néstor Kirchner, a questão deveria ser discutida no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). O Brasil, contudo, não cedeu às pressões. Mais do que a proximidade de Gutiérrez com Lula e o PT, ou dos interesses econômicos brasileiros no Equador, pesou na decisão do Itamaraty de conceder asilo ao ex-mandatário e pagar os custos materiais e políticos dessa operação a manutenção do papel de liderança do Brasil na América do Sul, reconhecido até pela secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice. “Era necessário que alguém se encarregasse de retirar Gutiérrez do Equador. Os brasileiros fizeram bem. Aqui, ele não sobreviveria”, disse a ISTOÉ o analista político equatoriano Simon Pachano, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

Gutiérrez, no poder desde 2002, foi destituído por 60 dos 62 deputados do Congresso por suposto “abandono do cargo”, tornando-se o terceiro presidente equatoriano a ser obrigado a renunciar – depois de Abdalá Bucaram, em 1997, e Jamil Muhad, em 2000. O ex-coronel teve que escapulir de helicóptero do Palácio Carandolet (sede do governo), para evitar ser linchado em praça pública. Depois que ele pediu asilo político ao Brasil, o Boeing 737 da Presidência da República, conhecido como Sucatinha, foi acionado para retirar Gutiérrez e sua família do Equador. Mas o governo equatoriano, temendo a fúria popular, adiou por quatro dias a emissão do salvo-conduto para o ex-presidente. No domingo 24, Gutiérrez e o embaixador Sérgio Florêncio saíram da embaixada num carro de polícia e vestidos como policiais, com colete à prova de balas e até capuz, no caso do ex-presidente. O Sucatinha, que desde quinta-feira aguardava instruções na Base Aérea de Porto Velho (RO), decolou sem saber se pousaria em Lacatunga, região de Quito, ou Guayaquil. O sinal positivo veio apenas meia hora antes do pouso: seria em Lacatunga, a 80 quilômetros da capital. “Às 4h30 de Quito (6h30 de Brasília), nos deram a notícia de que Gutiérrez já havia deixado a embaixada e se juntado à sua família em Lacatunga. O aeroporto estava fechado para qualquer operação, com todas as luzes apagadas; elas foram acesas apenas um minuto antes de nossa aterrissagem e voltaram a se apagar um minuto depois de nossa partida”, contou o brigadeiro Joselí Parente Camelo, depois de chegar em Brasília. A operação em solo equatoriano durou apenas dez minutos. Em Brasília, o ex-presidente equatoriano, sua mulher, Ximena, e sua filha mais nova, Viviana, embarcaram num helicóptero Super Puma CH-34 e de lá foram para o hotel dos oficiais do Exército, onde o ex-presidente permanecerá hospedado até encontrar local para morar. Gutiérrez poderá se asilar em território brasileiro por quatro anos, renováveis indefinidamente. Mas deverá se abster de falar de temas políticos.

Diferenças – Ao contrário do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que, apesar de enfrentar gigantescos protestos da classe média e do empresariado, não perdeu sua base de apoio entre os setores populares, Gutiérrez priorizou a austeridade fiscal e o combate à inflação, esquecendo as promessas de campanha. Já a classe média equatoriana começou a chiar por conta dos deslizes autoritários do presidente. A gota d’água ocorreu em dezembro do ano passado, quando Gutiérrez substituiu 27 dos 31 juízes da Corte Suprema, em uma medida claramente inconstitucional. A troca dos juízes se deu para permitir o arquivamento dos processos de corrupção contra o ex-presidente Abdalá Bucaram, folclórica figura destituída pelo Congresso em 1997 por “incapacidade mental”, cujo apoio político Gutiérrez estava buscando. O presidente acabou dissolvendo a Corte Suprema e decretando estado de exceção, o que acirrou ainda mais os ânimos. Sob pressão de protestos populares e sem apoio dos políticos e dos militares, acabou deposto. “Se ele continuasse, haveria sangue. A derrocada de Gutiérrez foi política; não teve nada a ver com a economia, que até vai bem. Ele se aliou com quase todos os partidos, mas não tinha capacidade de governar. Não tinha partido político, nem representava os indígenas. Era previsível seu fracasso”, afirmou o sociólogo Simon Pachano. Para ele, a maioria que o ex-presidente tinha no Congresso mostrou-se frágil, pois baseava-se em troca de favores políticos.

O problema do Equador hoje é político e social, já que a economia do país, rico em petróleo, apresenta bons resultados. Mesmo sofrendo os efeitos da dolarização implantada em 2000, a economia vem crescendo (7% no ano passado). O vice-presidente que assumiu, o cardiologista Alfredo Palacio, terá de lidar com o alto grau de descontentamento dos equatorianos: 83% esperam que toda a classe política renuncie, segundo pesquisa da empresa Spectrum. “A classe média está mais preparada do que seus dirigentes e não se adapta à mediocridade, exigindo que os políticos se ponham à altura dos acontecimentos. Eles ficaram no caminho, sem perceber o que se espera deles”, diz o administrador de empresas Camilo Sáenz.


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