Ser chamado de nazista costuma ser a pior das ofensas em qualquer país do mundo. Para os alemães, é quase uma tragédia: significa revolver as entranhas de um passado tenebroso, o qual a maioria prefere esquecer. O que levaria, então, um homem de fama e valor literário a admitir, já idoso, que integrara a sinistra tropa de elite de Adolf Hitler? O escritor alemão Günter Grass, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1999 e um dos ícones da esquerda alemã, confessou ao jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ) que fez parte das Waffen SS, a tropa de combate das SS, a força policial responsável pelo extermínio de milhões de pessoas nos campos da morte nazistas. Grass, aos 79 anos, fez seu mea-culpa na autobiografia Beim Häuten der Zwiebel (Descascando a cebola), a ser lançada em setembro. “O que aceitei com o estúpido orgulho de meus anos de juventude, depois da guerra quis me calar por vergonha”, disse Grass. E continuou: “Esse segredo sempre me atormentou. Meu silêncio nesses anos todos foi uma das razões de eu ter escrito o livro.” Como justificativa de ter sido voluntário das SS, ele declarou que queria “ficar longe de casa e da família”. O escritor tinha 17 anos quando integrou a 10ª Divisão Panzer SS Frundsberg.

Descascar essa cebola não rendeu apenas lágrimas ao romancista alemão mais festejado da atualidade, mas também descrédito. Durante todos esses anos, a única pessoa a compartilhar do segredo de Grass foi sua mulher, Anna. Ele escondeu essa faceta até dos filhos e de seu biógrafo Michael Jürgs. “Estou totalmente decepcionado. Se ele tivesse dito antes que aos 17 anos fez parte das SS ninguém teria se importado, mas agora ele coloca em dúvida a moralidade de tudo o que ele já disse”, falou Jürgs. Já era sabido que, no final da Segunda Guerra Mundial, entre 1944 e 1945, Grass servira a Wehrmacht (Exército alemão). O escritor e o papa Bento XVI compartilharam o mesmo campo de prisioneiros aliados. Mas Joseph Ratzinger, que foi obrigado a integrar a Juventude Hitlerista, ao menos até onde se sabe, passou longe das SS.

O desconcertante é que Grass sempre lutou para trazer à luz as discussões e relatos sobre o sombrio período nazista. O autor de O tambor (1959) sempre se alinhou às teses caras à esquerda européia: contra a instalação de mísseis nucleares intermediários americanos na Alemanha, nos anos 80, contra a xenofobia e o neonazismo, simpático às causas ambientais. Em Crabwalk, Grass tocou em uma outra ferida nacional, ao falar sobre as vítimas alemãs da Segunda Guerra.

O próprio jornal Frankfurter Allgemeine classificou o grande escritor de “hipócrita”. “O debate não teria sido mais honesto se soubéssemos que seguidores cegos das SS se tornaram, como ele, campeões da liberdade e da democracia?”, questionou o jornal. O vice-chanceler alemão e líder dos sociais-democratas, Franz Müntefering, foi mais ponderado e declarou que teria sido preferível Grass ter revelado seu segredo mais cedo. De qualquer forma, muita água correrá até que o silêncio de Günter Grass seja julgado pela história.