chamada.jpg
ROTINA
Ver Mindlin alegre era vê-lo com um livro nas mãos na biblioteca em sua casa

O empresário, advogado e bibliófilo paulista José Mindlin costumava dizer que não tinha o “fetiche da propriedade” e atribuía a si mesmo e a sua esposa, Guita, falecida em 2006, o papel de “guardiões” temporários dos 40 mil livros de sua biblioteca particular. Para ele, o vasto acervo literário que reuniu ao longo de sua vida já tinha um destino certo: uma instituição pública. Mindlin morreu no domingo 28, de pneumonia, aos 95 anos, sem ver o seu maior sonho realizado: a conclusão das obras da biblioteca que leva o seu nome na Universidade de São Paulo. A demora na finalização do projeto almejado há tanto tempo se explica: o empresário, que também atuou como secretário da Cultura do Estado de São Paulo, inacreditavelmente teve de brigar oito anos para conquistar o direito legal de doar os seus livros, o que ocorreu finalmente em 2006. E o que faz do simples e generoso gesto da doação uma árdua tarefa na qual se tem de superar uma infinidade de entraves burocráticos? No caso brasileiro, a culpa é de uma legislação que trata, a priori, o doador ao Estado como mal-intencionado ou fraudador em potencial. Sempre se parte do princípio de que ele vai receber even­tuais favorecimentos pessoais. Assim, dificulta-se indiscriminadamente o processo com muita burocracia e nenhum incentivo fiscal.

img_2.jpg
“É tanta burocracia do Estado para se doar uma coleção que ela se desmantela. É uma desgraça para o País”
Emanoel Araújo, diretor do Museu Afro Brasil

Essa dificuldade inibe a criação no Brasil do hábito de transferir acervos às instituições públicas, prática tão comum, por exemplo, nos EUA, onde existe a tradição cultural de os cidadãos devolverem à sociedade parte da riqueza que foi acumulada. Lá o doador pode abater até 100% em seu Imposto de Renda. Aqui, a pessoa física não pode descontar impostos e as empresas se beneficiam somente de valores inferiores a 2% do seu lucro. O gesto de Mindlin, um empresário que administrou a Metal Leve ao longo de 46 anos, expõe um senso de ética e responsabilidade social que sempre norteou suas atividades. “Ele achava que isso iria sensibilizar as pessoas. Queria que fosse um exemplo, uma semente que motivasse outros a trilhar o mesmo caminho”, diz Kátia Mindlin Leite Barbosa, representante brasileira da casa de leilões Sotheby’s e sobrinha do empresário, sobre a determinação do tio em tornar público o seu acervo pessoal.

Para Pedro Puntoni, professor e diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, a legislação brasileira não está preparada para esse tipo de atitude. “Não existe esse costume no País. É preciso mudar tal paradigma”, diz ele, que atualmente coordena a organização do legado literário deixado por Mindlin. O acervo doado inclui uma rara coleção de manuscritos históricos e livros que revelam os primórdios da formação do Brasil. São 17 mil títulos. A biblioteca, quando concluídas as obras, ocupará um espaço de 20 mil metros quadrados na USP e reunirá ainda um laboratório voltado para o restauro do papel e do livro. Atualmente 1,1 mil volumes que pertenciam a Mindlin, também membro da Academia Brasileira de Letras, estão disponíveis na internet no endereço www.brasiliana.usp.br.

img_1.jpg
TESOURO ONLINE
Parte do acervo de Mindlin é digitalizada: 2,4 mil páginas por hora

As aventuras em que o bibliófilo se envolveu para obter exemplares raros, primeiras edições disputadas e preciosidades da literatura nacional são muitas. Certa vez, viajou a Londres, voltou ao Brasil e, na sequência, voou a Paris para conseguir arrematar a primeira edição de “O Guarani”, de José de Alencar. Adquiriu-a por US$ 4 mil. Outra raridade é uma coleção de poemas de Petrarca que contêm diversos trechos de poesia vetados pela Inquisição. A paixão de Mindlin pelos livros, que ele próprio classificava com uma “loucura mansa”, lhe deu a persistência necessária para tornar pública a sua obra mais importante: uma mudança na lei que facilitará futuras doa­ções – não existe mais imposto sobre esse tipo de transação. O curador e diretor do Museu Afro Brasil, Emanoel Araújo, que transferiu duas mil obras de arte e dois mil livros para a instituição que dirige, acredita que, se o cenário não mudar, muitos acervos constituídos com amor e paciência poderão se desmantelar. Esse foi o caso da coleção de arte concreta Adolpho Leirner, vendida ao Exterior, e do acervo Hélio Oiticica, vítima recente de um incêndio. “Algumas famílias não podem doar suas coleções e precisam vendê-las a instituições porque carecem de dinheiro. Nesse caso, deveria se criar um mecanismo de dedução do Imposto de Renda. Já quem pode doar raramente encontra uma entidade bem aparelhada para receber o acervo”, diz ele.

img_3.jpg