A jangada voltou só, quando Arildo Antônio da Silva saiu para pescar nos dias de Carnaval. Não foi o mar revolto que fez o pescador de 53 anos passar dois dias longe de sua família em fevereiro e, sim, o Exército, que o manteve preso, sem justa causa, em um quartel. O episódio é mais um na rotina de 50 famílias de moradores de uma antiga aldeia de pescadores, a Imbuhy, fundada no século XIX em uma praia de Niterói, no Rio de Janeiro. A aldeia fica dentro do forte do mesmo nome, mas cujo acesso é feito através de outro forte, o Rio Branco. Alegando razões de segurança, desde o início do ano o Exército tem imposto duras medidas de controle a estes moradores. Para entrar em casa a qualquer hora do dia, eles são revistados pelos soldados da guarita de acesso ao forte. Além disso, há a obrigatoriedade de uma carteira de trânsito e eles não podem receber mais do que cinco amigos ou parentes por vez. Com isso, diante da proximidade do Natal, os moradores estão tristes: as tradicionais grandes confraternizações familiares, em Imbuhy, nunca mais.

É mais uma contradição do Rio. Enquanto muitos cariocas pedem a presença do Exército nas ruas como solução contra a violência – e nas favelas para garantir o direito de votar sem a interferência do tráfico –, na colônia de Imbuhy os sentimentos estão invertidos. “Resistimos à ditadura, mas não pudemos resistir a um governo que faz discurso de direitos humanos na ONU, mas não o exerce. Quem consegue sair de lá, não quer mais voltar”, diz o presidente da associação de moradores, o artesão Ailton Navega. O caso de Arildo é simbólico. O pescador saiu para trabalhar na praia restrita e deixou dois documentos numa guarita: a permissão para pesca e a autorização de trânsito. Interpelado por um sargento em patrulha, acabou preso por estar sem documentos, mesmo dizendo onde estavam as permissões. Por oito horas, sua família achou que ele tinha sido engolido pelo mar. Depois deste susto inicial, veio o outro: o pescador ficaria dois dias preso no quartel.

Para os moradores do local, o Exército justifica as atitudes dizendo que é “uma questão de segurança”. O pedido de entrevista feito por ISTOÉ na terçafeira 23 e encaminhado para a 5ª. Seção do Comando Militar do Leste não teve resposta. Na sexta-feira 26, a seção de Comunicação Social do Comando Militar do Leste informou que “o caso em pauta encontra-se na esfera judicial”. A equipe de reportagem flagrou Navega sendo barrado e submetido ao procedimento de revista, agora obrigatório a todos os moradores que entram de carro na comunidade. Primeiro, ele passa pela guarda do Forte do Rio Branco, que dá acesso à aldeia, é barrado e obrigado a abrir o porta-malas, mesmo mostrando a identificação de morador. “Os soldados não deixam nem entregadores de farmácia levar remédios para a aldeia”, afirma ele.

O relacionamento entre o Exército e a pequena comunidade não é bom desde 1986, quando um oficial destruiu a tiros o barco de um pescador. Mas a situação piorou muito desde 28 de maio, data em que o tenente-coronel Adilson Carlos Katibe baixou a “Atualização das Normas de Convivência do 21º GAC com os moradores da área do Forte Imbuhy”. O documento tem seis páginas de ordens e restrições para os cidadãos da aldeia. As divergências foram parar na Justiça. Depois de nove anos, os pescadores perderam a causa em segunda instância. O advogado Arão da Providência Araújo Filho, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, pretende recorrer. “Fiz uma representação no Ministério Público Federal de Niterói e ela foi negada. O jeito agora é ir a Brasília”, diz ele. Já o advogado dos moradores, Arthur Floriano Peixoto, denuncia o que chama de “aberração jurídica”: “Se a União quer a área, tem de desapropriar e pagar os moradores.” Peixoto diz que o rigor contra quem mora no local não existe para quem paga – um salário mínimo por mês – para freqüentar as praias. “Há privilegiados”, garante.

Se tudo isso já não faz muito sentido, o caso de Norma Corrêa Castro beira o surrealismo. Ela pediu ajuda à Associação dos Servidores Ativos e Inativos da Polícia e Bombeiros do Rio (Assinap) para transportar sua mãe que estava passando mal. A ambulância, entretanto, não pôde entrar porque foi barrada na porta. Triste e assustada, Norma suspira: “Todos nós temos muito medo de falar qualquer coisa.” Na tentativa de ajudar, o presidente da Assinap, Miguel Cordeiro, tentou ir à casa de Norma, mas também foi impedido. Revoltado, encaminhou denúncia à Polícia Federal. “Parece que o Estado de direito acabou.” Cordeiro registrou com um gravador de bolso seu diálogo com um guarda. Ele cedeu a fita à ISTOÉ:

Cordeiro: Bom-dia, eu gostaria de falar com a dona Norma Corrêa Castro, na casa 5.
Guarda: Ela é moradora? O nome do senhor está na lista?
Cordeiro: Que lista é essa?
Guarda: Tem que estar na lista, como eu disse “pro” senhor.
Cordeiro: Nem podem me acompanhar até a casa dela? Se tiver um problema de saúde grave, tem que avisar o comandante do forte para ele autorizar?
Guarda: É, tem que levar ao comandante para ele autorizar.
Cordeiro: Não é possível. Mesmo com problema de saúde? Isso tudo é para forçar o povo a sair logo daí, não é?
Guarda: Ah, sim, pode ser que o Alto Comando tenha orientado sim, a forçar um pouco.