Quando menino, os presentes de Natal eram guardados no quarto de minha avó, comprados ao longo do ano, já que eram muitas crianças. Sabíamos que, atrás das portas dos armários, empilhavam-se caixas de brinquedos e rolos de papel de presente, todos com estampas alusivas à data. Lembro-me especialmente de um, com crianças rosadas patinando no gelo, ao redor de um pinheiro, todas elas usando luvas de tricô. O papel tinha vida curta, a não ser que fosse resgatado por minha avó, que já reciclava tudo, muito antes da conscientização global. Geralmente, era rasgado sem piedade, na ânsia de descobrir o que havia dentro das caixas. Fascinavam-me as caixas e, até hoje, confesso, elas exercem sobre mim uma atração poderosa. Gosto, enfim, de adivinhar-lhes o conteúdo.
Um dia desses, procurou-me uma moça e disse que sua avó, recentemente falecida, tinha sido uma espectadora fiel de teatro ao longo da vida e que comentara, antes de falecer, que gostaria de me oferecer a coleção de programas que ela guardara durante todos aqueles anos. Agradeci, emocionado, combinamos tudo e, alguns dias depois, chegou a caixa. Grande. Cinzachumbo. Lacrada com fita adesiva. Estava sobre a cama, como aqueles presentes expostos, nos dias dos anos. Adivinhei-lhe o peso, tranquei-me no escritório e rasguei a fita com a excitação do menino que antevê o brinquedo. Dentro, envelopes alaranjados guardavam o tesouro. A mulher, que eu não conheci, deixou-me parte de sua história, através daquelas noites em que foi ao teatro, e posso mesmo adivinhar-lhe os gestos, comprando os programas e buscando as poltronas, nas salas de então.
Adivinhar vidas que passaram pelos teatros é uma de minhas manias. Gosto de chegar cedo e alimento a fantasia de que aqueles que passaram as vidas sobre as tábuas do palco nunca conseguem deixar os espaços, como um prêmio, ou condenação. Imagino que os fantasmas vivem sentados nas varas de luz, pendurados nas cordas, assistindo lá do alto do urdimento ao desempenho dos colegas. Mais de uma vez me senti observado, como se os colegas ali presentes (todos revisteiros do passado, devo admitir, porque são eles que vêm à comédia) estivessem a julgar-me, naquela determinada função. E gosto igualmente de adivinhar vidas para a platéia, como a da senhora que deixou-me a história de suas idas ao teatro.
De volta ao escritório, enfiei a mão num envelope e puxei um dos programas, ao acaso. A Casa de Chá do Luar de Agosto, na célebre montagem do TBC, com meu querido Italo Rossi, vivendo seu inesquecível Sakini. Aquelas páginas, guardadas por tantos anos, com tanto esmero, abriram as portas do tempo e voltei à São Paulo da época, aplaudindo os talentos que solidificaram as bases do nosso teatro. Pude até mesmo apreciar a neblina que envolvia aquela noite de outubro em 1956, quando se estendeu a mão para apanhar o programa. A mão que eu imagino clara e fina, quando enfim apago a luz para dormir.
A caixa tem vivido aqui no escritório e, volta e meia, quando as pressões do trabalho cotidiano tornam-se insuportáveis, dou um rápido mergulho em seu universo. Não me canso de agradecer a essa mulher que, como Pandora, me ofertou uma caixa cheia de emoções e sentimentos. Parte de uma vida que eu não conheci, mas que, espero, aceite esta crônica como uma prece.

Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor de novelas


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