No palco totalmente branco, formado por três gigantescas paredes móveis, os 14 bailarinos do Tanztheater Wuppertal, a conhecida companhia da coreógrafa alemã Pina Bausch, alternam-se em diferentes jogos, compondo uma série de gestos cotidianos. Cotidianos e absurdos. Numa engraçada cena, por exemplo, uma bailarina de cabelos longos, enfiada num vaporoso vestido de noite, penteia-se com o salto de seu sapato. Em outra, um homem vestido apenas com uma saia de bailarina clássica se põe a regar o palco. Esse tipo de recurso é uma marca dos espetáculos de Pina Bausch, um dos maiores nomes da dança contemporânea. Criadora da chamada dança-teatro, ela ampliou a linguagem do balé para além dos saltos e pontas de pé, argumentando que não se interessava apenas pelo movimento, mas também pelo que “move” as pessoas. Em Para as crianças de ontem, hoje e amanhã, coreografia que estreou na Alemanha em 2002 (em cartaz a partir da segunda-feira 28, no Teatro Alfa, em São Paulo), todas essas características ganham mais naturalidade ainda – afinal, o espetáculo trata da infância (ou, pelo menos, daquela criança que os adultos ainda preservam), o que justifica todas as liberdades cênicas às quais Pina Bausch já acostumou, e vem maravilhando, a sua platéia em todo o mundo. “É uma alegoria sobre o espírito da criança, que faz tudo sem medo nem preconceito, aquilo que o adulto adoraria fazer e não faz”, diz o produtor Emílio Kalil, que está trazendo o espetáculo ao Brasil.

Diferentemente de suas mais recentes criações, nascidas das tantas residências temporárias de sua trupe em diversos países (caso de Água, fruto de uma estada de cinco dias no Brasil, em 2000), Para as crianças de ontem, hoje e amanhã surgiu na cidadezinha de Wuppertal, no interior da Alemanha. O tema veio como resposta aos atentados terroristas nos EUA no dia 9 de setembro de 2001. Outro ponto de partida foi o conhecimento de uma lenda dos índios americanos intitulada Como o morcego veio à luz. Segundo essa lenda, o morcego é, na verdade, um esquilo sem pele e sem cauda, que sempre quis voar. Foi o Sol que lhe deu asas porque, aprisionado em uma árvore, acabou sendo libertado por um esquilo – tirando, dessa forma, a Terra de uma noite sem fim. Há ainda uma terceira fonte de inspiração: o romance Harmonia caelestis, do húngaro Peter Esterhazy, uma saga de três séculos sobre a tumultuada história da Europa Central.

Em se tratando de Pina Bausch não se deve esperar uma narrativa lógica nas quase três horas de espetáculo. Dona de uma imaginação prodigiosa, costuma criar suas peças a partir de questões lançadas aos seus bailarinos e é por meio das respostas deles, expressas geralmente por movimentos, que ela chega às coreografias: “Nas minhas peças, os movimentos são de tal forma simples que se pode pensar que ainda não são dança. Mas para mim é exatamente o contrário.” Já na abertura, dois bailarinos dançam sentados numa mesa e, sempre que um deles despenca em direção ao solo, o outro impede a queda com uma precisão invejável. Em outra passagem, é como se as mulheres alçassem vôos, com os braços abertos e os punhos voltados para baixo, apenas apoiando o ventre nas costas dos bailarinos. O que está em jogo não é apenas a plasticidade da cena, mas algo mais profundo, que as palavras não conseguem descrever sem tornar banal. Como disse o cineasta italiano Federico Fellini, que deu o papel da princesa cega para Pina Bausch no filme E la nave va (1983), o espectador quer “ que toda essa harmonia, toda essa leveza, todo esse encantamento não acabem jamais e se transformem em vida.” Embora as bailarinas brasileiras Ruth Amarante e Regina Advento não estejam em cena (elas estavam grávidas na época da criação do espetáculo), deve-se assistir a Para as crianças de ontem, hoje e amanhã porque, mais uma vez, Pina Bausch colocou seus bailarinos para dançar ao som de algumas músicas familiares, como Você gosta, de Suba, e O leãozinho, de Caetano Veloso.