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SAMBISTA
Adoniran era simples como a gente simples que ele cantava

No que há de melhor no campo da música popular brasileira, 2010 é o ano do compositor que criou o “Arnesto”, a “lâmpida” e o tiro ao “álvaro”. Criou também a Eugênia enamorada pelo viaduto Santa Ifigênia e o trem das 11 que levava ao então longínquo bairro paulistano do Jaçanã. Está-se falando do paulista Adoniran Barbosa, quando agora se comemora o centenário de seu nascimento. A data, cravada, é 6 de agosto, mas desde já, com cinco meses de antecipação, o País o homenageia na televisão e em documentários, em disco e livro, no teatro e em teses acadêmicas. O genial escritor russo Leon Tolstoi ensinou: “Descreva a sua aldeia e você será universal.” Foi isso que Adoniran fez através da música, e sua aldeia era a cidade de São Paulo e sua gente simples da periferia. Adoniran morreu em 1982, mas os seus sambas, hoje considerados clássicos, poderiam muito bem ter saído ontem de sua cabeça, dada a atualidade de suas letras. Tomese, por exemplo, “Aguenta a Mão, João”, composto há quatro décadas: “Não reclama contra o temporal/ Que derrubou teu barracão/ Guenta a mão, João/ Com o Cibide aconteceu coisa pior”.

Se a inspiração para tais versos fossem os barrancos e os barracos que andam se desmanchando nas chuvas, esse samba não estaria atual? A cidade que Adoniran retratou conserva ainda as mazelas de seu tempo (despejo de favelas, crimes, trânsito desordenado e atropelamentos), e isso é sinal de que pouco mudou na irracionalidade das administrações municipais que se sucederam. Mas é prova, também, de que o compositor da gravatinha borboleta foi a rigor um grande cronista do cotidiano paulistano – e a melhor crônica sempre busca a perenidade. “Adoniran queria fazer de São Paulo uma cidade eterna”, diz o produtor Fernando Faro, amigo e realizador de um disco-tributo ao artista. Para Faro, ele imortalizou paisagens e personagens que desapareceriam diante do crescimento urbano e da passagem do tempo. Preservou, assim, a memória de tradicionais bairros, como o Bixiga e o Brás do “Arnesto” que não esperou os amigos para um samba e nem “ponhou um recado na porta”. Foi a sagacidade de Adoniran ao retratar os efeitos do “progréssio” que garantiu a sua atualidade – ainda que boa parte de suas composições já seja quarentona. Trazia em sua obra o anarquismo dos rebeldes primitivos ao cantar os marginalizados e desvalidos? Não. Adoniran, homem tão simples como “os simples” que ele traduzia nas canções, resignava- se diante da “otoridade”, levava fé que “trabalhando duro” dava para comprar uma casinha no periférico bairro de Ermelino e então ter filhos, “dois meus/um de criação”.

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Basta lembrar de “Saudosa Maloca” e de sua continuação, “Abrigo de Vagabundos”. A primeira música descreve a demolição de um sobrado para dar lugar a um edifício; a segunda, um trabalhador que poupou e conseguiu levantar o seu barraco com “planta” legalizada por conta do jeitinho brasileiro dado pelo amigo “Saracura, que é fiscal da prefeitura”. O compositor Paulo Vanzolini, outro cronista de primeira linha da pauliceia, catedrático em zoologia na Universidade de São Paulo e amigo de Adoniran, explica a moral que há nessas duas “fábulas urbanas”: “Ele não gostava de malandro. Assim como eu.” Filho de imigrantes italianos, ele se chamava na verdade João Rubinato, mas passou a se apresentar como Adoniran Barbosa em 1935, quando intuiu que precisava de um pseudônimo mais brasileiro. Mesmo retratando em tantos detalhes a metrópole, nem era paulistano: nascera em Valinhos e mudou-se para São Paulo na década de 1930. Atento aos sotaques e gírias, os incorporou em suas letras e fez disso uma de suas marcas. Na época da jovem guarda, por exemplo, compôs “Já Fui uma Brasa” ao ver o seu samba perder espaço para o iê-iê-iê de Roberto Carlos. “É só assoprar que a sua obra acende de novo”, diz o  escritor Celso Campos Jr., autor do livro “Adoniran: uma Biografia” – apenas uma das tantas homenagens que ele já começa a receber este ano.

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