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O que a xilogravura e o grafite podem ter em comum?

O imaginário nordestino, com seus costumes e lendas fantásticas, narrados pela literatura e pela xilogravura de cordel. O traçado simples, que ilustra a vida sertaneja com encanto e eficácia, é o tema de Narrativas em madeira e muro, exposição que aponta para a influência da xilogravura popular na obra dos artistas Gilvan Samico e Derlon Almeida. A mostra inaugurou o 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco e promove uma espécie de repente entre esses dois pernambucanos de diferentes trajetórias e gerações.

O encontro é descrito por ambos como inusitado e interessante. Aos 80 anos, Samico vê as xilogravuras que realizou na década de 60 – quando a influência do cordel fez-se mais afirmativa em seu trabalho – em franco diálogo com os grafites de Derlon, de 23 anos. “Por que não? Meu trabalho pode ter uma afinidade com o dele, bebemos na mesma fonte da gravura popular. É uma experiência válida e um resgate do espírito da literatura de cordel”, diz Samico. Por sua vez, Derlon, que tem se destacado no panorama do grafite por substituir a usual relação com o hip-hop pela citação à iconografia popular nordestina, reverencia seu interlocutor. “A miscigenação dessas linguagens permite novas leituras. Conhecer o Samico estimulou meu trabalho. E acredito que ver o grafite como arte também foi bom para ele”, diz o jovem artista.

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TEMAS MÍTICOS O fantástico nas obras de Samico (acima) e Derlon (à esq.)

Se o grafite é uma manifestação urbana, o trabalho de Derlon imprime à estética do cordel uma qualidade própria da vida na cidade. O artista apresenta na exposição as pinturas em papel jornal que costuma colar nos muros da cidade, um grande mural inédito e fotografias de suas grafitagens em muros de Olinda e do Recife.

“Seu trabalho lembra as ilustrações do J. Borges. Derlon transporta aquelas gravuras para um suporte novo e aos poucos vai encontrando uma identidade própria”, diz Samico, que renovou a gravura brasileira ao aproximar a tradição nordestina da linguagem expressionista que aprendeu com os mestres Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo – de quem foi aluno nos anos 1950. A associação ao cordelista J. Borges é um atestado de qualidade para o grafiteiro. Mas, tanto nos desenhos de um quanto nas gravuras do outro, é possível vislumbrar os temas das xilogravuras de J. Borges, o contador de histórias mais cobiçado de Pernambuco, que certa vez declarou a um documentarista: “Gosto de escrever mentira. A mentira é que me alimenta, consigo viver dela. Mas mentira com fundamento. Mentira que tenha condição de ter acontecido, de estar acontecendo ou de futuramente acontecer.”

 

Era uma casa muito engraçada

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À entrada da Fundação Eva Klabin, a casa que pertenceu à colecionadora Eva Klabin até sua morte, em 1991, e que guarda um acervo de 50 séculos de história da arte, temos a sensação de que algo está fora de ordem. No salão principal, os sofás organizam-se em ziguezague e uma escada de serviço impede o acesso à cristaleira, em plena sala de jantar (foto abaixo). Dentro do quarto, no andar superior, uma estante está despencada no chão, esparramando roupas, chapéus e sapatos sobre os tapetes kilin de Eva. Em toda a casa do bairro da Lagoa, no Rio, objetos pessoais ocupam lugares esdrúxulos e próteses brotam em cantos inesperados. Essa espécie de poltergeist que parece ter tomado conta da casa chama-se, na realidade, Saudade, e trata-se de uma intervenção do artista José Bechara, convidado da nona edição do Projeto Respiração, que estabelece uma ponte entre o acervo clássico da fundação e a arte contemporânea. Segundo o artista, a desordem é o sintoma do “desamparo” da casa diante da ausência de sua proprietária. “A casa desperta o imaginário literário dos artistas”, afirma o curador Marcio Doctors, autor do Projeto Respiração. “Os artistas são convidados a se relacionar não só com a casa e a coleção, mas com a personagem Eva Klabin”, diz ele.

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Os móveis da colecionadora adquirem vida aos olhos de Bechara, mas sua experiência com objetos domésticos “animados” começou muito antes, em 2002, no projeto A casa, durante uma residência artística no Paraná. Nesse trabalho, o artista transformou a casa que estava ocupando em uma escultura de grandes dimensões, que cuspia seus móveis portas e janelas afora. De lá para cá, essas operações de exorcismo de armários, colchões, mesas, poltronas, etc. ganharam diversas versões no trabalho de Bechara. A escultura Cega, em alumínio fundido (foto acima), é o mais recente desdobramento dessa série, em cartaz na individual do artista da galeria Lurixs: Arte Contemporânea, no Rio.