Cinema

Algo como a trajetória de um garoto que nasce octogenário e, com o passar dos anos, começa a rejuvenescer na mesma medida em que acumula as experiências normais do amadurecimento. Pois foi exatamente essa história, criada nos anos 1920 pelo escritor americano F. Scott Fitzgerald, que ganhou os cinemas no filme O curioso caso de Benjamin Button (estreia na sexta-feira 16), no qual o ator Brad Pitt, na pele desse bebê especial, faz uma inacreditável viagem no tempo, do seu nascimento, no final da Primeira Guerra, à tragédia do furacão Katrina, em 2005. Dirigido por David Fincher, que ficou conhecido por tramas de suspense como Se7en e O clube da luta, esse drama fantasioso aponta para uma nova reviravolta na velha sétima arte – e ela tem a ver com o também velho encantamento de se contar uma fábula mágica e envolvente.

Cada vez mais usada no cinema, a computação gráfica virou sinônimo de filme de ação. São milhões de bytes e centenas de horas passadas diante de computadores para criar o percurso de uma bala, os golpes de um super-herói ou as expressões faciais de criaturas horrendas. Imagine, porém, se esse arsenal fosse utilizado para levar às telas os voos de imaginação dos melhores escritores.

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Tentativas bem-sucedidas nesse sentido já foram feitas no passado – é só lembrar do fantástico uso de efeitos especiais em 2001 – uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick. Mas o que se vê em Benjamin Button é um salto qualitativo. Com passagem pela Industrial Light and Magic, a empresa de George Lucas especializada em truques digitais, Fincher sabia disso quando lhe propuseram a direção do filme. Os produtores duvidavam da possibilidade de se retratar de forma realista a vida de uma pessoa que tem 1,60m e aparência decrépita aos seis meses de idade e aos 85 vê-se reduzido ao tamanho de um bebê. "Eu disse, claro, hoje é possível fazer tudo o que você imaginar", declarou Fincher em entrevista ao jornal The New York Times. O uso da tecnologia na criação de algo antes impossível pode sugerir que o personagem de Benjamin Button seja mais uma bizarra atração de circo. Nada mais equivocado. Ele, de fato, tem semelhanças com o inocente Kaspar Hauser, de Werner Herzog, ou com o menino que decide não crescer de O tambor, de Volker Schlondorff. Mas não é sua excepcionalidade e a relação perversa da sociedade diante dessa diferença que interessam na história.

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Fitzgerald escreveu o conto em que se baseia o filme inspirado numa frase de outro escritor, Mark Twain, para quem "a vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e gradualmente chegar aos 18". O roteirista Eric Roth, autor de Forrest Gump, subverte essa ideia. Primeiro porque, ao nascer, Benjamin perde a mãe no parto, é abandonado pelo pai (que o coloca na escadaria de um asilo para idosos) e passa a infância como uma pessoa fragilizada, em meio aos habitantes do lugar. Mas o que poderia ser um fardo é logo convertido em algo positivo. Se aos 7 anos ele se locomove numa cadeira de rodas e se vê proibido de ir à rua pela madrasta (uma generosa negra impedida de ter filhos), tem à disposição a companhia de figuras impagáveis, também “crianças”, pela sabedoria da velhice. É assim que, na adolescência, com o corpo de um cinquentão, ele decide partir para o mundo no rebocador de um marinheiro irlandês e colecionar histórias de vida como outro homem qualquer – não sem enviar postais para o grande amor de sua vida, a bailarina Daisy, esplendidamente interpretada por Cate Blanchett, que ele conhecera ainda menina. 

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Acontece que, nessa vida de porto em porto, Benjamin não encarna o “homem comum passando por situações extraordinárias”, caso de Forrest Gump, ao qual vem sendo comparado. Para Fincher, o personagem é exatamente o contrário: um ser extraordinário vivendo situações banais. E extraordinário porque aprendeu cedo essa lição que só se tem ao final da vida: a de que a perda é incontornável. E mais ainda no seu caso, pois, à medida que rejuvenesce, ele assiste à partida de todos os entes queridos. Em Hollywood, essa bela fábula sobre o grande mistério da existência passou de mão em mão por 40 anos e esteve na mira de Steven Spielberg, Ron Howard e Spike Jonze. Só saiu do papel quando Brad Pitt se juntou ao projeto, orçado em US$ 150 milhões.

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 Grande parte desse montante foi destinado aos efeitos que permitiram transformar o ator, hoje com 45 anos, em um homem de 85. Para isso recorreu-se ao mesmo recurso utilizado para criar aquele demoninho enrugado de O senhor dos anéis, ou seja, um ser irreal a partir da soma do corpo de atores anônimos com a cabeça digitalizada de Pitt. Nas cenas em que aparece bem mais jovem que hoje (e velho na contagem ao inverso do enredo) tem-se uma sensação da artificialidade daquela beleza reluzente, que pode ser lida como uma crítica aos avanços atuais da cirurgia plástica. A grande surpresa, contudo, é reservada para os momentos de velhice do personagem, quando ele surge com a aparência de garoto. Os três meninos que interpretam Benjamin nessa fase, é bom ressaltar, são atores mirins – e reais.