ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ

BERLINDA O presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, chefia uma Casa que perdeu a iniciativa

No Brasil, o poder é exercido pelo Executivo, Legislativo e Judiciário. Um sistema de pesos e contrapesos, de vigilância mútua. E, nesse sistema, sempre que um dos poderes se fragiliza, os demais se sobrepõem a eles. É o que vem acontecendo. Na segunda-feira 29, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou a sua Medida Provisória de número 400, que destina um crédito extraordinário de R$ 50 milhões para a Presidência da República e para o Ministério da Saúde. A marca lhe confere o ritmo de nada menos que uma medida provisória a cada quatro dias. Nos últimos cinco anos, desde o início do primeiro mandato do atual presidente, cerca de 80% de tudo o que é aprovado pela Câmara ou pelo Senado é de iniciativa do Poder Executivo, seja MP, seja projeto de lei. “O maior legislador do Brasil é o presidente da República, e o Supremo Tribunal Federal trabalha de forma acelerada para se tornar o segundo”, comenta o deputado Alceni Guerra (DEM-PR). Depois de determinar a fidelidade partidária e definir os critérios a partir dos quais ela será cumprida, o Supremo regulamentou o direito de greve dos servidores públicos. Nos dois casos, atropelou a falta de iniciativa do Congresso, a quem caberia decidir sobre os dois temas. Tais fatos levam o próprio presidente interino do Congresso, o senador Tião Viana (PT-AC), a uma triste constatação: dos três Poderes, o que hoje aparentemente menos legisla é exatamente o Poder Legislativo. “É uma situação absurda, mas a culpa é nossa”, diz Viana. “Nós não estamos nos empenhando para exercer a nossa iniciativa de propor e fazer as leis.”

Alceni Guerra viveu o melhor momento do Congresso Nacional, e hoje acredita viver o pior. Em seu primeiro mandato, houve a tentativa de aprovação da emenda Dante de Oliveira, que determinava a volta das eleições diretas para presidente da República, e a articulação que levou à eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Em seguida, Alceni elegeu-se deputado para a Assembléia Nacional Constituinte, seguramente o ponto alto do Legislativo brasileiro no período após a abertura política. “Hoje, nós não fazemos absolutamente nada”, critica ele, 20 anos depois da Constituinte. “A atual falta de importância do Congresso é tão grande que não seria exagero dizer que, se ele fechasse, num primeiro momento não faria falta à população brasileira”, atreve-se a dizer Alceni. Senador mais antigo do País, com 25 anos de mandato, Pedro Simon (PMDB-RS) concorda: “O Congresso brasileiro atravessa o seu período de maior esvaziamento.”

Simon lembra que são duas as funções do Congresso: propor leis e fiscalizar as ações dos demais Poderes. “Depois do nosso ponto alto na Constituinte, fomos durante um bom tempo excelentes na fiscalização, com as CPIs”, recorda. “Agora, além da imensa dificuldade que existe de se superar a resistência do governo e instalar uma CPI, no final, por nossa fraqueza, as investigações acabam se voltando contra nós: só pegam deputado e senador.”

Para Simon, o que acontece é que os parlamentares, em vez de assumir as funções de formuladores e fiscalizadores, preferem hoje “ir às compras”. É o termo que ele usa para definir a barganha de deputados e senadores para aprovar os temas de interesse do governo. É a regra que passou a prevalecer depois que o chamado baixo clero, o grupo de deputados mais clientelistas e fisiológicos, conseguiu chegar ao poder elegendo presidente da Câmara o ex-deputado Severino Cavalcanti. A partir daquele momento, o que antes era feito de forma envergonhada passou a acontecer de maneira explícita.

Simon exemplifica com a discussão sobre a CPMF, já aprovada na Câmara e agora em debate no Senado. “Em vez de se discutir vantagens e desvantagens sobre o imposto do cheque, o debate gira em torno da liberação de emendas orçamentárias e de cargos no governo”, critica ele. O cientista político Murilo de Aragão concorda. “A crise de formulação do Congresso decorre do fato de que, de uns tempos para cá, a maioria dos parlamentares resolveu preferir fazer somente a intermediação das propostas”, analisa ele, num eufemismo para o toma-lá-dá-cá. “A formulação no Congresso virou um acidente de percurso.”

O problema para o País é que a inexistência de um Congresso forte é um risco grande para a democracia e um estímulo a mais para possíveis arroubos autoritários. Fechar o Congresso em algum momento está no topo da lista das ações de qualquer ditador. Antes de implantar o Estado Novo, Getúlio Vargas fechou o Congresso. A ditadura militar fez o mesmo por duas vezes. Foi um Congresso enfraquecido que permitiu a Hugo Chávez fazer na Venezuela uma reforma constitucional que ampliou em grande escala os seus poderes. E é diante de um Congresso enfraquecido que ele planeja uma nova reforma que lhe permita reeleger-se indefinidamente. “Isso não é nada bom”, constata Tião Viana. “Nós temos que trabalhar para reequilibrar de novo os pilares do Estado Republicano. Do contrário, em breve, o presidente da República editará a Medida Provisória de número 500. Ou o Supremo novamente fará algum dever de casa que o Congresso não fez.