O prédio da rua Benjamim Constant, número 158, no centro da capital paulista, guarda um tesouro. Ali há um acervo de valor incalculável, que registra a história de São Paulo e do Brasil. É a sede do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, que mantém uma biblioteca de livros raros com mais de 70 mil volumes, oito mil títulos de jornais e periódicos que datam do surgimento da imprensa aos dias de hoje, documentos de dom Pedro II e da princesa Isabel, além de bandeiras e fardões do tempo do Império, a primeira planta da cidade de São Paulo e arquivos como os do Barão de Iguape e do pintor Benedito Calixto. Há ainda quatro museus: o de Santos Dumont, do Império, da Segunda Guerra Mundial e da Revolução de 1932. O instituto foi fundado em 1884 por ilustres representantes da elite paulistana que hoje dão nomes a ruas e praças da cidade, como Bernardino de Campos, Cincinato Braga, Francisco de Paula Ramos de Azevedo e Theodoro Sampaio. São sócios da instituição nomes como o do advogado Miguel Reale, o desembargador José Renato Nalini, o historiador Célio Debes e o monarquista João de Scantimburgo. Para a diretoria, foram indicados, entre outros, os advogados Ives Gandra Martins e Antonio Penteado Mendonça (bisneto do jornalista Júlio Mesquita), o poeta Paulo Bomfim, conselheiro; e o escritor Hernâni Donato, presidente de honra.

Mesmo com tantos intelectuais respeitáveis, o instituto virou um “barraco”, com bate-bocas e brigas na Justiça. Sócios antigos temem pela sobrevivência da instituição centenária por causa do desaparecimento de livros raros e acusações de comercialização indevida de objetos pertencentes a seu acervo. Houve uma cisão no comando. O desembargador Augusto Mota Ferraz de Arruda, secretário-geral, denunciou a presidente Nelly Martins Ferreira Candeias, professora aposentada da Faculdade de Saúde Pública da USP, por má gestão. ISTOÉ teve acesso a um documento entregue no dia 6 à Promotoria de Meio Ambiente de São Paulo e ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), no qual Arruda enumera fatos “estranhos” e pede uma investigação “séria e rigorosa”. Nelly negou as irregularidades, se disse “ultrajada” e “vítima de calúnias”.

O imbróglio começou em 25 de fevereiro, quando Arruda encaminhou carta aos sócios, na qual ameaçava renunciar caso não fossem apuradas supostas irregularidades. No início do mês, a diretoria renunciou coletivamente e indicou a presidente como interventora. Em 2004, o Ministério Público já havia recebido denúncias contra Nelly encaminhadas pelo ex-presidente do Instituto Roberto Machado de Carvalho. Há também uma ação na 13ª Vara Cível de São Paulo, impetrada em julho de 2004, na qual Carvalho denuncia a venda “irregular” do quadro Forte de Cabedelo, de Benedito Calixto, e a destruição de documentos históricos.

Leilão – Na época, o ex-presidente conseguiu medida cautelar na Justiça e impediu um leilão que seria realizado na sede do instituto. Havia a suspeita de que, entre os lotes a serem arrematados, estariam objetos do acervo. O historiador Brás Gallotta, ex-funcionário, reconheceu algumas peças. Arruda questiona: “Por que realizar leilão dentro do instituto, contendo peças e obras raras, especialmente referentes à história de São Paulo, sugerindo que tais peças e obras pertenciam ao instituto? Qualquer pessoa que lesse o folder do leilão acreditaria piamente que seriam leiloadas peças e obras do instituto.” Mesmo com a suspensão pela Justiça, o leilão teria ocorrido na seqüência, em um escritório. Em fevereiro, Nelly conseguiu derrubar a liminar que suspendeu o leilão. O afastamento dela da presidência também foi pedido por Carvalho, mas a Justiça negou.

Arruda diz que a presidente nunca consultou a diretoria para tomar decisões e que livros e objetos, bem como documentos e correspondências, entravam e saíam sem nenhum registro. Por isso, ele decidiu expedir uma ordem de serviço que exigia essa documentação. Foi desautorizado pela presidente. De acordo com o desembargador, Nelly teria pressionado “dramaticamente” os diretores com relatos de que “a grave situação financeira em que se encontra a entidade” poderia “levar à imediata penhora de seus bens”. Mas isso não seria verdade. O objetivo, segundo Arruda, seria obter o aval para a venda de bens do instituto – como os quadros de Calixto –, além da promoção de leilões. O quadro, garante Arruda, foi vendido sem autorização da diretoria e “de uma forma bastante nebulosa”. Nelly, para convencer a diretoria, teria garantido que obteria uma renda de, no mínimo, R$ 135 mil. Depois, o quadro foi avaliado em R$ 60 mil e, ao final, em dezembro de 2003, apareceram R$ 42 mil na conta da entidade. “A venda está envolta em contradições, ocultação de dados, irresponsabilidade institucional e nenhuma transparência administrativa, circunstâncias essas que eliminam qualquer possibilidade de se conceder à presidente o benefício da dúvida ou da boa-fé”, ataca o desembargador. “(Ela) causou ao instituto um prejuízo histórico cultural irreparável.”

Prisão – Mas o desaparecimento de livros e a
estranha orientação de mandar para o lixo obras doadas por familiares de antigos sócios foi o que mais causou arrepios a antigos sócios. Relatos sobre o sumiço de livros começaram a vir à tona coincidentemente após a prisão, em maio do ano passado, do estudante de biblioteconomia Laéssio de Oliveira, 31 anos, acusado
de integrar uma quadrilha que furtava livros e objetos
raros das bibliotecas Nacional, do Rio de Janeiro, e Mário de Andrade, de São Paulo. Logo em seguida, Nelly e Liliana Piazza, diretora de patrimônio, teriam ido espontaneamente ao 3º DP de São Paulo para verificar
se havia, entre os livros e revistas apreendidas pela polícia, algo pertencente ao instituto. Na delegacia, observaram três livros e algumas revistas, mas não reconheceram nada.

A polícia recomendou que se dirigissem, então, ao Arquivo do Estado, onde estava outra parte do material. Caso encontrassem algo lá, deveriam registrar um boletim de ocorrência na delegacia da área. Só aí o delegado expediria uma ordem para a liberação. Mas Nelly retornou ao 3º distrito e registrou um furto de 100 livros e revistas do instituto, sem especificar nada. “Ou seja, não disse à autoridade policial quais eram os livros e revistas nem a data do furto, nem suspeitos, nem de que forma ocorreu o tal furto. Um boletim genérico e inverossímil”, estranhou Arruda. Nelly e Liliana garantiram a funcionários ter encontrado 13 revistas Parafuso (de 1916 a 1922). O intrigante, segundo o desembargador, é que do total de 50 exemplares dessa revista registrados no instituto faltavam oito números. E a presidente teria apresentado cinco números a mais do que teriam sido furtados. Na avaliação de Arruda, o objetivo seria montar uma história “para acusar o funcionário Carlos (Alberto de Araújo, há 27 anos na entidade) de que este agira em conluio com o ladrão preso.” Parece uma novela, que promete novos e polêmicos capítulos.