Meu avô materno, na mítica ilha de minha primeira infância, costumava acordar muito cedo, antes mesmo do nascer do dia. Eu acordava com ele, pois minha mais remota lembrança é aquele feito inigualável de agarrar os pés, deitado no sofá que parecia enorme, à espera da refeição, preparada na cozinha, que começava a tingir-se de amanhecer. O cheiro do leite fervido chegava à sala, e até hoje, quando este aroma me apanha desprevenido, joga-me imediatamente de volta àquele sofá. Posso, então, visitá-lo novamente, trabalhando de encontro à parede de azulejos brancos, manchados de rosas, ouros e encarnados, muito magro, o chapéu de palha eternamente assentado na cabeça e o amor que ele renovava cotidianamente, com seus pequenos gestos, como ferver o leite, alimentar o neto e colocar as iscas nos anzóis. Em cada breve movimento, em cada mão que trabalhava com afinco, havia, eu sei agora, um mundo de significados que a cena escondia de um espectador acidental.

Em Lisboa, muitos anos depois, o cortineiro do teatro em que eu me apresentava, um senhor de muitos anos de profissão, pediu-me encarecidamente que eu incentivasse o público a aplaudir mais, no final da função, assim teríamos mais cortinas.

– Dona Cláudia (Raia) sabe fazer cortinas, mas o senhor logo corre para o camarim!

É do ser humano embrenhar-se pelos labirintos à cata dos gestos que nos formaram e que são as fundações das nossas pequenas civilizações particulares

Passei a voltar para novos aplausos, tantas vezes quanto ele desejava, só para agradá-lo e, durante a temporada, acostumei-me a observar suas mãos, que puxavam as cordas com destreza e uma técnica toda especial. A cada nova cortina, seu rosto reluzia de puro prazer e eu todas as noites lembrava de meu avô e curvava-me, agradecendo aos aplausos, com o cheiro do leite fervido nas narinas.

Todos nós, mais cedo ou mais tarde, fazemos esse tipo de arqueologia. É do ser humano embrenhar-se pelos labirintos à cata dos gestos que nos formaram e que são as fundações das nossas pequenas civilizações particulares. E é lá, na penumbra do labirinto, que vamos nos deparar novamente com as cozinhas, terraços e pátios de outrora e encantar-nos com os pequenos gestos que, de tão frágeis e efêmeros, aprenderam a multiplicar-se para sobreviver. A mão que me estendia a mamadeira, ao alvorecer, repetia o gesto infinitas vezes, cidade afora, levando na espuma branca do leite todo o amor que fosse possível aprender. É igualmente no labirinto que podemos descobrir para onde foram os valores que esses pequenos gestos nos transmitiram um dia e que constantemente a vida nos tenta fazer esquecer. Acreditem! Estão lá, presos para sempre em seus cenários, como as flores que um jovem apaixonado guardou dentro dos livros, na mesma manhã em que iniciou-se esta crônica.