Neste domingo, 14 de dezembro, o Chile vive um momento político decisivo: o ultradireitista José Antonio Kast e a candidata da esquerda Jeannette Jara, filiada ao Partido Comunista, disputam o segundo turno da eleição presidencial. O pleito, que opõe extremos ideológicos, reforça o processo de consolidação da extrema-direita no espaço institucional chileno, fenômeno que remete tanto ao passado autoritário da ditadura de Augusto Pinochet quanto às tendências políticas contemporâneas da direita radical no resto do globo.
Kast, fundador do Partido Republicano e deputado por vários mandatos, obteve votos suficientes para avançar ao segundo turno e agora é apontado como favorito da corrida. Sua campanha se apoia em temas como insegurança pública, imigração irregular e “recuperação da ordem” – discursos que ecoam amplamente entre setores dos eleitores chilenos frustrados com a situação social e econômica do país.
+ Jara x Kast, duas visões da mulher e da sociedade no Chile
A trajetória pessoal do candidato é cercada de contradições. Ele já referenciou Pinochet publicamente múltiplas vezes e afirmou que “se o ditador estivesse vivo, votaria em mim”, reiterando uma aproximação discursiva com parte da herança política da ditadura chilena – algo que se tornou ponto de crítica por adversários e analistas
Além disso, documentos históricos apontam que seu pai, Michael Kast, foi membro do Partido Nazista na Alemanha antes de migrar ao Chile depois da Segunda Guerra Mundial. Apesar da informação ser amplamente referenciada na imprensa internacional e local, Kast contesta e classifica a filiação partidária como decorrência do serviço militar compulsório da época.
Neste texto, a IstoÉ conversou com especialistas em Relações Internacionais para entender como, após 50 anos, os chilenos votam em um candidato que homenageia uma das ditaduras mais violentas da América Latina.
Da força ao voto: duas formas de ascensão

O general Augusto Pinochet: ídolo de Jair Bolsonaro e tema central dos discursos de Kast
A ascensão da extrema-direita chilena ocorre em um país onde, há quase 50 anos, o regime militar de Pinochet chegou ao poder por meio de um golpe de Estado em 1973, interrompendo o governo democrático de Salvador Allende e instaurando uma ditadura marcada por repressão política e graves violações de direitos humanos. Naquele período, a direita se impôs pela força e pela coerção, instaurando uma nova ordem política e social que perduraria por quase duas décadas.
Hoje, especialistas explicam que o fenômeno é distinto: Kast e sua base não recorrem a um golpe ou ao uso explícito de violência estatal para assumir posições de poder, mas sim a instrumentos institucionais e à construção de apoio eleitoral em contexto de insatisfação popular e polarização. Porém, mesmo com a diferença entre o método de Pinochet e a ascensão de Kast, os vestígios de uma memória política antidemocrática continuam a reverberar na sociedade chilena.
Para o professor de Relações Internacionais Roberto Uebel, da ESPM, a manutenção da nostalgia por Pinochet e a ascensão da extrema-direita hoje no Chile devem ser analisadas em múltiplas dimensões. Segundo ele, não se trata apenas de uma questão local: “Primeiro, há um movimento vinculado ao crescimento da extrema direita no próprio Sistema Internacional, especialmente nas Américas, que finalmente chegou no Chile. Segundo, uma simpatia de boa parte da população com a agenda de Kast e um sentimento de mudança, o qual a extrema‑direita chilena conseguiu capitanear”.
“Outro fator que colabora para a ascensão de Kast é a presença daqueles eleitores ainda saudosistas da ditadura de Pinochet, que manifestam sentimentos anticomunismo e anti‑esquerda.”, explica Uebel.
O professor destaca que a Constituição de 1980, herdada da ditadura, continuou por décadas a moldar estruturas sociais e econômicas com traços conservadores, mesmo diante de governos progressistas recentes – criando um ambiente em que pautas ultraconservadoras podem prosperar quando a polarização aumenta.

Portando fotos de pessoas desaparecidas, ativistas de direitos humanos protestam do lado de fora da Suprema Corte do Chile em Santiago contra a libertação de seis militares e um policial da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) – AFP
A ascensão da direita chilena não surgiu de forma repentina, mas de um processo que já podia ser observado na eleição de Gabriel Boric, marcada por forte polarização e disputa voto a voto. Uebel explica que, naquele momento, “os sinais de maior adesão às pautas da direita conservadora já estavam presentes”, impulsionados por um amplo sentimento de insatisfação com a qualidade dos serviços públicos. Esse movimento não é inédito, sendo apenas uma reverberação do que já ocorre “desde a Alemanha até a Bolívia, passando pelo Brasil, EUA, Argentina, França, etc.”
“A insatisfação com o sistema de saúde, pensões, aumento da retórica anti-imigração e dos episódios de violência em grandes centros urbanos serviram de combustível para esta pauta antissistema e que se vinculou a um movimento global de ascensão da extrema-direita”, pontua.
A retórica de Antonio Kast, marcada por elogios a Augusto Pinochet e pela defesa aberta do legado da ditadura chilena, encontra paralelos com outros líderes de direita, como Jair Bolsonaro (PL), no Brasil. O ex-presidente também recorreu a figuras associadas ao regime militar em múltiplas ocasiões – em entrevistas, chegou a declarar que Pinochet “deveria ter matado mais gente” e, em 2016, durante o voto pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT), Bolsonaro homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça como torturador da ditadura militar brasileira.
Para analistas, os gestos compartilhados ajudam a explicar a identificação entre setores conservadores de ambos os países, sustentada por um saudosismo explícito a regimes autoritários.
Atualização no discurso da extrema‑direita
No Chile de 2025, a proposta de Kast não se apresenta como um retorno explícito às práticas autoritárias do passado, mas como um conjunto de políticas ultraconservadoras e nacionalistas atualizadas – ênfase no combate ao crime, políticas anti‑imigração, defesa de um Estado mínimo, redução da burocracia estatal e prioridade comercial em detrimento da proteção de direitos humanos. Esse conjunto de ideias se alinha com líderes de direita contemporâneos em outras partes do mundo que capitalizam insatisfação com o regime democrático e com a percepção de insegurança econômica ou social.
Denilde Holzhacker, também professora de Relações Internacionais da ESPM, aponta que a transição chilena pós‑ditadura foi tardia em enfrentar de forma plena a memória e as consequências políticas desse passado. Para ela, há um “saudosismo” com aspectos financeiros do período Pinochet e uma desconfiança na eficiência da democracia atual que abre espaço político para o discurso de Kast.
“A saída de Pinochet do poder se deu como um dos processos mais longos em comparação a outros países que tiveram regimes ditatoriais. Ele sai de uma forma negociada e se torna senador vitalício, então permanece na política. E, por isso, esse saudosismo permaneceu na lógica da política chilena.”, expõe a professora.
Isso porque, além do aspecto político, a economia fortalece um profundo argumento para os saudosistas. Segundo Holzhacker, os anos de Pinochet são lembrados por muitos como um período de crescimento e diversificação, em que a política neoliberal e de Estado Mínimo foi implementada e celebrada como um marco de sucesso. Apesar das críticas terem se intensificado nos últimos anos – especialmente com a perda de ritmo econômico do Chile – essa memória de prosperidade continua sendo um ponto de valorização para os apoiadores.
Hoje, no entanto, a volta da nostalgia não é apenas sobre Pinochet, mas sim sobre o desgaste da própria democracia. Há uma sensação de que o sistema democrático falhou, alimentada pela percepção de “ineficiência na entrega de serviços públicos” pelos governos mais progressistas. É essa desconfiança generalizada na política atual que cria-se um terreno fértil para que líderes da extrema‑direita, como Kast, ganhem ainda mais força.
Perspectivas pós-eleição

O ex-candidato presidencial chileno e fundador do ultradireitista Partido Republicano, José Antonio Kast, em 7 de maio de 2023 – AFP
Com Kast aparecendo à frente nas pesquisas de opinião e consolidando vantagem na reta final da campanha, especialistas já projetam cenários possíveis para um eventual governo do líder ultraconservador. Para a professora Denilde Holzhacker, a perspectiva mais imediata é a de um período marcado por tensões políticas.
Ela avalia que, caso eleito, “Kast poderá ter um governo de embates com parlamentares de esquerda e setores da sociedade civil, semelhante ao Milei na Argentina”, o que tende a dificultar a aprovação de reformas estruturais e a implementação de seu plano de Estado mínimo. Mesmo com o apoio do Partido Republicano e de outras siglas de direita, a professora lembra que ele ainda precisará construir maiorias, num Congresso fragmentado e historicamente resistente a rupturas profundas.
“Diferente de Donald Trump, a dificuldade de Kast é conseguir um apoio parlamentar amplo. Neste sentido, teria que governar por decreto.”, projeta Holzhacker.
Por causa da falta de apoio parlamentar, a especialista considera um segundo caminho possível: um movimento mais centralizador por parte de Kast, especialmente se a oposição bloquear suas principais agendas. A retórica de combate à criminalidade – uma das bandeiras centrais de sua campanha – pode se tornar um instrumento para tentar ampliar apoio popular e fortalecer sua relação com as forças de segurança, mas, segundo a Holzhacker, esse seria “um dos piores cenários, pois tensionaria as instituições democráticas”.