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APOIO Néstor e Cristina Kirchner (à dir.) em manifestação pró-governo que reuniu 100 mil pessoas na Praça de Maio
 
PANELAÇO Moradores de Buenos Aires (à dir.) protestam contra a crise, que está provocando até falta de carne

Com a chegada do inverno, muitos brasileiros estão de malas prontas para curtir o frio na vizinha Argentina. Entre julho e setembro do ano passado, eles somaram mais de 230 mil pessoas. Pelos cálculos da Associação Brasileira de Agências de Viagem, esse contingente deve aumentar 20% este ano. Desta vez, porém, o cenário que aguarda os turistas brasileiros não é dos melhores. Em uma crise que já completou 100 dias, panelaços, bloqueios nas estradas, desabastecimento de combustíveis e falta de alimentos entraram para o cotidiano argentino. Além disso, devido à ausência de investimentos no setor energético, o fantasma do apagão ronda o país.
O conflito entre governo e produtores rurais começou em 11 de março, com o aumento do índice das retenções, como são chamados os impostos sobre exportação de produtos agrícolas. Criadas durante a crise de 2001, elas incidem sobre matérias-primas como soja, milho, trigo e girassol e representam quase 15% da arrecadação do governo. "Parte da sobrevivência macroeconômica da Argentina deve-se às retenções", explica o cientista político argentino Jose Natanson.
Pelas novas regras, o sistema de taxação é móvel. Aumenta ou diminui de acordo com a valorização do produto no mercado internacional. No caso da soja, os exportadores, que pagavam ao governo 35% do valor de venda, devem passar a pagar 45%. "Esta decisão provocou uma rebelião entre os produtores, que não querem que o governo se aproprie de uma porcentagem cada vez maior de suas rendas", diz Natanson. Este aumento da alíquota está diretamente ligado ao preço da soja, que de março de 2007 para cá subiu 87%. "O que temos hoje, na Argentina, é um conflito distributivo pela utilização dos recursos advindos da alta internacional dos produtos", diz o professor de ciências políticas da Unesp Tullo Vigevani.
Por isso, os produtores, encabeçados pelas quatro maiores organizações ruralistas, promoveram quatro paralisações e diversos bloqueios de estrada nas últimas semanas. Como conseqüência, na capital, Buenos Aires, e em outras cidades há escassez de derivados do leite, hortaliças, frutas e carnes. Combustíveis estão em falta em todo o país.

A força da classe agropecuária ficou também explícita nos panelaços registrados nos últimos três meses. O governo se surpreendeu com o maior deles na noite da segunda-feira 16. Multidões marcharam por Buenos Aires, Córdoba, Rosário, Mar del Plata e Bahía Blanca, dois dias depois de a polícia ter detido um dos principais líderes ruralistas, Alfredo de Angeli.
No dia seguinte, a presidente Cristina Kirchner anunciou o envio do projeto de retenções móveis ao Congresso. "Trata-se de uma medida para dar mais legitimidade à mudança", diz Natanson. Embora tenha dado um passo rumo à conciliação, Cristina continuou com um discurso ácido contra os líderes ruralistas. "Eles que constituam um partido político", disse a presidente durante manifestação de apoio ao governo, que reuniu mais de 100 mil pessoas na Praça de Maio, em Buenos Aires.

MAXIMILIANA LUNA/TELAM/IMAGEPLUS
A crise não está enraizada apenas na questão do aumento dos impostos. Para o economista José Márcio Camargo, professor da PUC do Rio de Janeiro, o país não fez o dever de casa. "Ao contrário do governo brasileiro, a Argentina deu o calote na dívida externa e não respeitou os contratos firmados a partir das privatizações dos anos 90." Isso tudo fez com que as empresas investissem menos no MAXIMILIANA LUNA/TELAM/IMAGEPLUS o país sofrer com estradas obstruídas, desabastecimento e risco de apagão país. "Em vez de aumentar os juros, o governo passou a controlar os preços e, com a alta das commodities, a taxar os lucros", explica Camargo. Celso de Hildebrand e Grisi, professor da Faculdade de Administração da USP, concorda."A Argentina vive um descontrole das contas, uma situação de corrupção, uma péssima gestão do dinheiro público, como o Brasil já viveu em outros tempos", diz, ressaltando que o governo Kirchner manipula dados, esconde a inflação e congela preços. Para garantir a oferta no mercado interno, Cristina mudou a forma de taxar as exportações. "A intenção é que fique difícil exportar, assim ela garante o abastecimento do mercado interno", afirma Grisi. Na sua opinião, a Argentina tem postergado medidas de ajuste fiscal. "Eles vão ter que pensar em algo como o Plano Real, com uma política cambial adequada e lei de responsabilidade fiscal", diz. A receita, tudo indica, parece ser brasileira.