GABRIEL DE PAIVA/AG. O GLOBO

VISÃO O presidente Lula se arrisca a ver a realidade em 3D, como no filme da Petrobras

Na sexta-feira 26 de outubro, o presidente Lula visitou o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da Petrobras, no Rio de Janeiro. Colocou óculos especiais e assistiu a um filme sobre áreas de petróleo no fundo do mar. As imagens eram projetadas em terceira dimensão, a técnica na qual a platéia tem a ilusão de profundidade. No dia anterior, Lula recebeu o deputado federal Devanir Ribeiro (PT-SP), seu amigo desde 1969 e secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, quando Lula o presidia. A visita não deveria ter maior importância, assim como o filme da Petrobras. Mas no gabinete presidencial do Palácio do Planalto o que se desenrolava na tarde daquela quintafeira era mais uma cena do enredo do momento em Brasília: o terceiro mandato do presidente Lula.

Como um filme em 3D, esse debate transcorre em múltiplos planos. Em áudio público, o presidente tem sido cristalino, como na comemoração de seus 62 anos numa festinha para militantes petistas em frente ao Palácio da Alvorada: “Esse negócio de achar que tem pessoas que são imprescindíveis e insubstituíveis não existe em política”, disse. “A alternância de poder é uma coisa extremamente importante para o fortalecimento da democracia.” O dia do aniversário foi o mesmo em que ele viu o filme em 3D. E, como se houvesse imagens cuja real profundidade só é acessível com o uso de óculos especiais, Lula tem tirado de cena todos os possíveis candidatos da base do governo, enquanto nada faz para conter os defensores do terceiro mandato. O maior deles é justamente o deputado Devanir, autor de uma proposta de emenda constitucional para dar a Lula o direito de concorrer novamente à Presidência em 2010. “Nunca tocamos nesse assunto”, diz Devanir. Ele, no entanto, faz a ressalva. “O Lula nunca me desautorizou. Nem me repreendeu.” Se efetivamente não pensasse em terceiro mandato, o presidente teria intimidade para barrar a iniciativa de Devanir. Eles dividiram uma cela no Dops, quando Lula foi preso com base na extinta Lei de Segurança Nacional. Juntos, fundaram o PT. Quando Lula chegou ao poder, ajudou Devanir a se eleger deputado federal. As duas famílias se freqüentam e Lula e Devanir costumam se encontrar nos finais de semana. “Já perdi a conta de quantas vezes estive no Alvorada”, diz o deputado.

“O presidente está agindo com dubiedade”, diz o senador Arthur Virgílio Netto, líder do PSDB. “Ele diz que não quer, mas deixa correr solta a articulação pelo terceiro mandato.” Entre aliados do presidente, esse comportamento tem levado a posturas titubeantes de quem vislumbra o jogo subterrâneo, mas não foi convidado a participar dele. “Isso é casuísmo”, diz, por exemplo, o presidente interino do Senado, Tião Viana (PT-AC). Mas ao mesmo tempo que acha que não se pode “pensar nisso numa democracia madura”, Viana acredita que o debate é “muito precoce”. Ou seja, talvez o terceiro mandato possa vir a ser uma alternativa. O presidente nacional do partido, deputado Ricardo Berzoini (SP), diz que não há “razão para especulação” porque o próprio Lula descartou a proposta. “Democracia é bom demais e a gente não pode brincar com a democracia em países da América Latina”, disse Lula, voltando ao tema pela segunda vez em menos de 72 horas, na véspera de embarcar para Zurique. Marotamente, contudo, Berzoini informa que “não existe assunto proibido” no PT.

“Estão armando um golpe”, acusa o senador Agripino Maia (RN), líder do DEM. O PSDB também mostrou que está levando a sério o risco do terceiro mandato. Na sexta-feira 26 de outubro, o deputado Bruno Araújo (PE), apresentou um projeto de emenda que serve de contra-ataque: ela limitaria os cargos executivos, de prefeitos ao de presidente, a apenas dois mandatos consecutivos. Essa batalha de emendas e declarações tornou público um debate que há tempos circula nos bastidores do governo. Lula, de fato, está sendo estimulado por um grupo de auxiliares que privam de sua intimidade a desejar (e a trabalhar) o terceiro mandato. De acordo com duas autoridades com acesso às conversas secretas do Planalto, o plano para que Lula permaneça mais tempo no poder é cozinhado em dois caldeirões.

ILUSTRAÇÃO: ALEX SILVA SOBRE FOTOS: MAX G PINTO/AG. ISTOÉ; ANDRÉ DUSEK/AG. ISTOÉ; ZECA CALDEIRA/AG. ISTOÉ;

1. JOSÉ DIRCEU Todo-poderoso, acabou acusado de ser o chefe do “mensalão”
2. ANTÔNIO PALOCCI Queridinho dos mercados, caiu por violar sigilo bancário de um caseiro
3. TARSO GENRO Um dos quadros do PT, virou ministro da Justiça de Lula
4. MARTA SUPLICY Ex-prefeita de SP, enfraqueceu-se em 2004 ao perder a eleição municipal
5. CIRO GOMES O ex-ministro do PSB (Integração Regional) não tem o apoio dos petistas
6. DILMA ROUSSEFF A “gerentona” do PAC pode ser uma opção do PT para 2010

 

O primeiro é de pura bruxaria política. Sua solução exige mudança da Constituição e vai direto ao ponto – o terceiro mandato consecutivo em 2010. Eis então o projeto de Devanir: apresentar até o final do mês, no máximo depois que o Senado aprovar a CPMF, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dando direito ao presidente da República de convocar plebiscitos. Hoje, só o Congresso pode fazê-lo. Se a proposta vingar, Lula estaria livre para consultar o povo sobre seu direito de concorrer de novo. E essa aprovação, por si só, emparedaria as vozes contrárias no Congresso e no Supremo Tribunal Federal. Além disso, o “sim” ao terceiro mandato funcionaria como uma pré-eleição, minguando as forças da oposição para a disputa oficial em 2010.

OPINIÃO “Terceiro mandato é golpe, a menos que o povo rasgue a Constituição”
Marco Aurélio, ministro do STF

 

 

 

Além do amigo Devanir, outros dois deputados se dispuseram a mostrar o rosto no projeto Lula-2010: Carlos Willian, aliado do PTC de Minas, e Cândido Vaccarezza, do PT de São Paulo. A proposta de Carlos Willian, que ele também pretende oficializar logo depois da aprovação da CPMF, e de zerar todo o jogo eleitoral, criando o direito de Lula e dos atuais governadores de concorrer mais uma vez. “É do interesse de todos, inclusive para o Aécio Neves, que quer ser presidente mas ainda não mostrou seu trabalho”, opina Willian. O caso da emenda de Vaccarezza é um pouco mais contraditório do ponto de vista político. Ela propõe a adoção do parlamentarismo. Sob um novo regime de governo, Lula teria o direito de concorrer a presidente. “Não se pode falar em golpe, pois são propostas dentro do jogo democrático”, justifica Vaccarezza. O problema aí é ver o PT apoiando o parlamentarismo, depois de ter liderado a frente de partidos que defendeu o presidencialismo no plebiscito nacional sobre o regime de governo. É puro casuísmo porque não se pensa num governo com primeiro-ministro, mas apenas em criar um subterfúgio para se renovar o mandato de Lula.

Três dos assessores mais próximos do presidente já se engajaram no projeto do terceiro mandato em 2010: o ministro Luis Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência, o assessor especial Marco Aurélio Garcia e o chefe-degabinete Gilberto Carvalho. Dentro do PT, participam da articulação Ricardo Berzoini, o deputado Antônio Palocci e o ex-ministro Luís Gushiken. O ministro da Coordenação Política, Walfrido dos Mares Guia, que é do PTB, também está nessa bruxaria. Nenhum deles aceita falar sobre o assunto. Todos sabem que qualquer uma dessas emendas é uma ruptura sem paralelos da Constituição de 1988 e uma medida de força que atenta contra a normalidade democrática do Brasil. “Não passa”, avisa o deputado Ciro Gomes (PSB-CE). “Terceiro mandato é golpe, a menos que o povo faça uma revolução e rasgue a Constituição”, declarou o ministro do STF Marco Aurélio Mello. Além de reforçar o fantasma latino-americano do populismo, a simples discussão do tema é suficiente para jogar por terra aquilo que o PT conquistou de mais precioso: o respeito aos acordos e contratos, o compromisso com a continuidade da política de estabilização econômica, o reconhecimento internacional da segurança jurídica e institucional do Brasil.

É por isso que outros auxiliares de Lula estão aquecendo um segundo caldeirão, com base nas atuais regras do jogo. Por esse plano, Lula voltaria a disputar a sucessão em 2014. A idéia contemplava a possibilidade de o presidente apoiar Ciro Gomes, num acordo para que ele ficasse apenas quatro anos. Numa reunião no Planalto, chegou-se à conclusão de que seria difícil tal acerto ser respeitado. Ao mesmo tempo, a direção do PT avisou que, nesse caso, o partido teria nome próprio para 2010.

INTIMIDADE Amigo de Lula desde 1969, Devanir Ribeiro apresentará emenda para um terceiro mandato

A maior entusiasta de um governo intermediário entre Lula 2D e Lula 3D tem sido a ministra Dilma Rousseff. Sondada para encabeçar a chapa desse acordo, topou na hora. Ou seja, se for a candidata de Lula, Dilma comprometese a ficar só um mandato, caso seja eleita. Curiosamente, foi depois dessa sondagem que o presidente oficializou seu plano de mudar a Constituição para terminar com a reeleição.

Em recente entrevista à revista ISTOÉ Dinheiro e em outra ao jornal Folha de S.Paulo, Lula admitiu a possibilidade de conquistar um terceiro mandato alternado, de voltar em 2014 ou 2015. “Se tiver que acontecer, a conjuntura política vai indicar”, disse. Como sempre, teve o cuidado de reforçar, naquele áudio cristalino, que é contra o terceiro mandato consecutivo. Mas o que Lula fez foi oficializar o debate sobre o fim da reeleição, pregando a mudança do mandato para cinco ou seis anos. “Quatro anos é pouco”, disse.

Não está claro o quanto desse projeto é apenas uma cortina de fumaça para uma guinada constitucional que, afinal, poderia permitir ao presidente mais um mandato de forma imediata. “Lula está dando todos os indícios de que o candidato de Lula chamase Lula”, avalia o cientista político Paulo Kramer. O fato é que, de dois meses para cá, o presidente tem estimulado aliados a orquestrar a música da Constituinte exclusiva para a reforma política, na qual seriam discutidos, entre outros temas, o tamanho do mandato presidencial e o instituto da reeleição. Seja qual for a verdadeira intenção de Lula, pelo menos dois caciques petistas, pré-candidatos à Presidência, se opõem a mudanças nas regras: Tarso Genro, ministro da Justiça, e Marta Suplicy, ministra do Turismo.

Quando Lula disse que o ideal é o mandato de cinco anos, sem reeleição, na prática avisou que topa abrir o lacre da Constituição. “Por que a reeleição não poderia mudar agora, beneficiando o presidente em exercício?”, questiona Marcos Coimbra, do instituto de pesquisa Vox Populi. “O próprio fato de o tema estar em pauta mostra que a reeleição não está ainda totalmente estabelecida em nossa cultura política.” Com base na iniciativa de FHC, que criou a reeleição, Coimbra acha que “os contemporâneos de Lula estão muito mais interessados em mudar constituições do que em respeitá-las”.

A questão essencial agora é saber até que ponto quebrar o lacre está dentro dos limites da nossa ordem democrática? Nos Estados Unidos, Franklin Roosevelt foi eleito quatro vezes consecutivas. Mas seis anos depois de sua morte, acontecida três meses após a quarta posse, o Congresso americano aprovou a 23ª Emenda, permitindo apenas uma reeleição. Hoje, se Bil Clinton quiser voltar, não pode. “A democracia exige renovação, há cansaço de materiais e de pessoas”, diz o professor Walter Costa Porto, autor do livro História dos partidos políticos brasileiros. “Acho isso uma insensatez tão grande. O presidente Lula queria tanto a reeleição e conseguiu. Imagina se ele agora vai entrar nessa de terceiro mandato? Duvido. Seria um absurdo”, diz o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

No Palácio do Planalto e no PT, o debate não é mais sobre se Lula deve ou não tentar ser presidente pela terceira vez. Ele já deixou claro que quer ficar mais tempo no poder. A maior dúvida hoje é se o presidente deve se engajar de peito aberto na alquimia do terceiro mandato consecutivo. Essa iniciativa levará o Brasil a um confronto que se imaginava superado, desde que o País retomou o trilho democrático. De um lado estará a força de uma nação que, passo a passo, construiu regras sólidas. Esse povo colhe o benefício dessa segurança constitucional, distanciando-se de aventureiros como Hugo Chávez e embolsando US$ 32 bilhões em investimentos diretos apenas neste ano. Do outro lado, estará o último mito da política nacional desafiando as regras do jogo para usufruir de mais poder pessoal. Até hoje, sempre que a Constituição se defrontou com os mitos produziu-se uma conta que terminou sendo paga com surtos de autoritarismo e desconfiança internacional. É por isso que Lula precisa voltar a enxergar o futuro sem a ilusão dos óculos 3D. O Brasil ficou importante demais para ceder a caprichos pessoais.

CONTRADIÇÃO Quinze anos depois de o PT lutar pelo presidencialismo, Vacarezza quer parlamentarismo