Sentado num canto da imensa sala de ensaios eu, como o narrador de Isherwood, sou uma câmera. Diogo Vilela está cantando uma canção enquanto vai-se transformando em Zazá, um renomado travesti da Riviera, seu personagem em “A Gaiola das Loucas”. É fascinante observar um ator no exercício da criação, eu penso, enquanto ele evolui pela sala, seguindo os passos de seu número. Não sei por que, mas me vem à mente um pensamento de Nietzsche sobre o perigo de se olhar para o abismo, porque ele termina olhando de volta. No teatro, só sobrevivem aqueles que conseguem suportar o tal olhar que o abismo lança de volta, eu penso, porque é essa a sensação que temos ao encarar um novo texto, uma nova história, uma nova vida. Começar do zero, engatinhar, descobrir um caminho que é só nosso e, principalmente, aprender a respirar como nos pede o autor. Começar outra vez, é isso. Atravessar o túnel em busca da luz. O fato é que, por essas e outras, a mirada do abismo volta e meia nos ronda. Agora, a canção já está no meio e eu me preparo para entrar em cena, enquanto a chuva castiga sem piedade a São Paulo que também se prepara para o Carnaval.

A chuva cai sobre o telhado do galpão e cria um fundo sonoro constante e monótono. A câmera que eu sou, talvez operada por algum mecanismo da memória, resolve buscar um plano de algum momento do passado e eu vejo o rosto de minha mãe num reflexo do vidro, que surge entre a lente que são meus olhos e a cena da peça que avança – agora, Diogo aplica um batom vermelho e a cor faz mamãe sorrir, porque para a família de papai, mais burguesa e, de certa forma, conservadora, mamãe era conhecida como “vermelha”. A gente sabe que está envelhecendo quando ainda usa termos como esse, eu penso, mas enfim… Mamãe esteve presa por algumas horas durante a revolução, porque a Faculdade de Filosofia da época fervia de ideias e vários professores foram denunciados. Isso, é claro, contribuiu para aumentar sua fama e o adjetivo era dito de forma carinhosa e galhofeira nas reuniões da família de papai. Ela não ligava e convivia com as tias professoras primárias e os tios militares com uma harmonia e uma felicidade que foram um grande legado, eu penso hoje em dia. Mamãe era uma mulher de esquerda, é claro, mas de uma esquerda encharcada de humanidade, que realmente honrava seu princípio básico.

Transitava como ninguém por Sartre e Marcuse e sentava-se à noite, ao lado da família, para assistir aos folhetins de Janete Clair. Aliás, lembrei agora de um pensamento de Herbert Marcuse que tem a ver com o movimento dessa câmera que sou eu, no ensaio à tarde: o tempo não cura nada, mas tira o incurável do foco central. O agudo final da canção de Diogo me traz de volta e eu ainda vejo mamãe desaparecer como uma névoa que se dissipa soprada pelo vento. Sinto saudades dela, gostaria de ouvir sua voz outra vez. Alguém me chama a atenção. Eu preciso entrar em cena. Avanço na direção de Diogo e tropeço na primeira fala. Peço desculpas e recomeço. É a tal história. O abismo sempre olha de volta. Sempre. Lá fora, continua a chover.

Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor de novelas