O clássico Madame Bovary, do escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), acaba de ganhar uma edição comemorativa pelos 150 anos de sua primeira publicação. O lançamento é da Editora Nova Alexandria e traz uma raridade: inclui em 40 páginas o rumoroso processo judicial que foi movido à época contra o escritor. É a primeira vez que esse processo é traduzido e editado no Brasil. Acusado de ofensa à moral e à religião devido ao comportamento que deu à sua personagem Emma Bovary, Flaubert recebeu até uma condenação de ordem estética, por causa da linguagem utilizada em trechos do romance. Madame Bovary fora inicialmente publicado em fascículos, na Revue de Paris, em 1856. A história, que narra o adultério de uma mulher do interior da França, entediada com o casamento, foi um sucesso instantâneo de público – assim como o julgamento que a sucedeu.

Entre 31 de janeiro e 7 de fevereiro de l857, a 6ª Câmara do Tribunal Correcional de Paris assistiu ao processo de acusação do Ministério Público, representado pelo advogado Ernest Pinard, e à defesa conduzida por Marie- Antoine-Jules Sénard. Gustave Flaubert foi inocentado e, em abril, o romance Madame Bovary foi lançado em livro, pela primeira vez, pela editora francesa Michel Levy. O autor dedicou a obra ao seu defensor público. De leitura fácil e agradável, o processo revela um diálogo entre visões de mundo distintas e também uma meticulosa análise do texto literário de Flaubert, que teria se inspirado em Delphine Delamare, a filha de um fazendeiro casada com um cirurgião de Rouen. Outra hipótese é que a fonte de Emma Bovary tenha sido a amante do autor, a poeta Louise Colet.

Independentemente da fonte real, alguns momentos da obra são escolhidos pela acusação como “nocivos” à sociedade. Entre eles, a promotoria destaca o ponto de o suicídio de Emma “não ter sido motivado pelo arrependimento, mas pelo fato de a personagem estar afogada em dívidas”. Flaubert é condenado também pela ausência de uma moral religiosa precisa. “No livro não existe um personagem que possa dominar essa mulher. O único que nele domina é a sra. Bovary”, escreve Pinard. Em outra passagem lembrada pela acusação, Emma entra em profunda depressão após ser abandonada pelo seu amante Rodolphe. Ao recuperar-se e passar a comungar, se dirige a Deus com o mesmo ardor com que se dirigia ao amante. A reação do promotor é indignada: “Em que língua se reza a Deus com as palavras que se dirigem ao amante nas efusões do adultério? (…) nenhuma mulher, mesmo de outras regiões, mesmo sob os céus da Espanha ou da Itália, murmura a Deus as carícias adúlteras que ela endereçava a seu amante.”

Em defesa de seu cliente, Sénard reconstitui toda a origem nobre e aristocrática do escritor e convence o júri de que a acusação estava julgando todo um livro a partir de alguns trechos da obra. O caminho da defesa é tão conservador quanto o da acusação: defende a moral e a religião. Sénard procura, no entanto, mostrar que há realismo na história de uma mulher que se perde em sonhos inatingíveis e morre em decorrência deles. E defende que a sucessão de decepções e o fim trágico ensinam o ideal cristão: encontrar o amor no casamento e na fé. O defensor exemplifica a cena: “Um marido que vos beija, põe seu gorro de algodão e come sua sopa convosco é um marido prosaico que vos revolta; aspirais um marido que vos ame, que vos idolatre, pobre criança! esse homem será sempre um libertino que vos terá por um minuto para brincar convosco.”