Pouco mais de três meses após registrar o primeiro óbito por covid-19, o Brasil superou ontem a triste marca de 50 mil mortos pela doença, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL. A primeira das 50.058 vítimas morreu em 17 de março, quando a pandemia matava milhares na Ásia e Europa. O Brasil, porém, não aproveitou a chance de aprender com a experiência de outras nações.

Enquanto a curva de casos e óbitos subia, dois ministros da Saúde caíram, houve discursos divergentes de autoridades federais, estaduais e municipais, e os afetados sofrem com atrasos na compra e entrega de testes, leitos, respiradores e outros recursos fundamentais para aumentar a chance de sobrevivência dos infectados. O Brasil é hoje o segundo país com mais vítimas, com o agravante de que o número diário de mortos não dá sinal de recuo. Após um isolamento social falho, que não freou suficientemente o avanço do vírus, o desafio agora é fazer com que a reabertura, vista com ressalvas por especialistas, não leve a um descontrole maior da transmissão.

Os brasileiros vítimas da pandemia deixam pais, filhos, mulheres, maridos. Amigos e amigas. A maioria tinha algum fator de risco, mas outros tantos não resistiram, mesmo sendo jovens e sem doença crônica. Para quem perdeu um parente ou amigo, estar ou não no grupo de risco não importa. A dor da perda repentina por uma doença desconhecida machuca igual. Torna-se ainda mais dura quando nem sequer uma despedida é permitida. Por causa do risco de contaminação, as vítimas são enterradas em caixões lacrados, sem direito a velório. O Estadão conta abaixo como famílias de vítimas da covid-19 estão lidando com as perdas.

NO LUTO, À ESPERA DO REENCONTRO E DA DESPEDIDA

Em 31 anos de casados, Maria Rita e João Batista França nunca haviam conversado sobre como seriam suas cerimônias de despedida quando a vida de um dos dois chegasse ao fim. O analista de sistemas de 61 anos não perdia tempo pensando na hora da morte. Pelo contrário. Fã de churrasco, música e dança, ele geralmente estava mais “preocupado” em marcar a próxima festa em família, sem necessidade de data especial.

Foi por conhecer toda a animação do marido que Maria Rita ficou surpresa quando, no início de março, ele comentou, pela primeira vez, seu desejo para quando morresse. “A gente estava vendo as notícias daquele monte de gente morta por coronavírus na Itália quando ele me disse que, quando chegasse a hora dele, não queria ser enterrado. Queria ser cremado e ter as cinzas jogadas no Rio Ribeira, no interior de São Paulo, onde nasceu”, conta. Na ocasião, nenhum brasileiro havia sido vítima da covid e a dona de casa não imaginava que sua família, já em isolamento, poderia ser infectada.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Uma semana depois, França começou a sentir febre e cansaço. Em 24 de março, foi internado com diagnóstico de coronavírus. Um dia depois, Maria Rita deu entrada no mesmo hospital, na zona oeste de SP. Ambos ficaram na UTI, mas ele não aguentou. Morreu no dia 4 de abril.

“Eu estava na UTI, mas estava lúcida. Meu filho ligou e disse: ‘Mãe, o pai não resistiu’. Chorei muito na hora, mas o que eu mais pensava é que eu tinha de conseguir sair para meus filhos não ficarem sozinhos”, diz ela, que teve alta dias depois.

O filho teve de cuidar dos trâmites da cremação do pai. Mas, com a mãe ainda no hospital e os demais parentes isolados no interior, a família adiou a cerimônia no Rio Ribeira. “Meu filho foi até a cidade de Sete Barras e colocou a urna com as cinzas junto do túmulo da minha sogra. Construiu uma capelinha para que fiquem lá até que toda a família possa se encontrar de novo e fazer uma cerimônia bonita de despedida para ele.”

‘QUANDO ALGUÉM MORRE, RENASCE COMO ÁRVORE’

Tutu, maraka, tiama, charango, kena, violão. Não importava o nome, José Cajueiro dominava qualquer instrumento de percussão ou de corda. Desde jovem era o responsável por levar música às festas, rituais e também aos protestos realizados pelos kokamas.

Nascido na aldeia em Santo Antônio do Iça, no Alto Solimões, circulou por diferentes regiões do Amazonas. Os últimos anos de vida passou na Aldeia Karuara, na zona rural de Manaus. Teve cinco filhos.

A música fez dele figura fundamental na integração do seu povo – são cerca de 12 mil kokamas espalhados pelo Amazonas, de acordo com censo do IBGE de 2010. “Era de uma alegria contagiante. Inspirava os mais jovens. Foi muito importante por manter viva as nossas tradições”, conta a prima Altaci Rubim.

Cajueiro partiu de repente, em maio, quando a pandemia adentrou o interior do Estado. Passou uns dias internado em Manaus com todos os sintomas da covid-19.

Mas não foi testado. E, por ter morrido fora de sua aldeia, não foi registrado como indígena. “O governo tem essa política de excluir os índios. Não pensaram em nada para diminuir a pandemia nas aldeias. Contamos apenas com a solidariedade da sociedade”, diz Altaci, que reivindica, por exemplo, a construção de hospitais de campanha no interior do Amazonas, onde indígenas estão morrendo. “Não há nenhum atendimento nas regiões mais afastadas.”

As mortes dos índios fora das aldeias e as medidas restritivas da pandemia não permitem aos kokamas realizar suas cerimônias. Eles aguardam a passagem do vírus para fazer uma grande festa em homenagem a quem sucumbiu à doença.

“Quando uma pessoa morre, ela renasce como árvore. Se você foi bom, volta como uma planta medicinal ou frutífera. Se não, voltará em uma planta com espinhos que ninguém se aproxima”, diz Altaci. Para ela, o primo se tornará uma samaumeira. “É grande e protetora. Ele era assim. E com sua música, nos protegia.”


SONHO DE AJUDAR OS OUTROS E ADEUS ANTES DO TEMPO

Tatiane Ferreira Ferraregi já tinha mais de 30 anos quando finalmente concluiu a faculdade de enfermagem. Como a maioria dos brasileiros, por falta de condições financeiras, não conseguiu iniciar uma graduação logo ao sair do ensino médio, mas nem por isso desistiu de trabalhar na área da saúde, sua grande paixão.

Fez um curso para tornar-se técnica em enfermagem e logo começou a trabalhar em hospitais públicos e privados. Depois de alguns anos, pelo bom desempenho profissional, teve a oportunidade de cursar uma faculdade com parte da mensalidade paga pelo empregador. “O hospital ofereceu uma bolsa para ela fazer enfermagem. Ela ficou muito feliz. Depois ainda se especializou no atendimento de pacientes em UTI”, conta a irmã Cilene dos Santos, de 42 anos, também enfermeira.

Tatiane se formou em 2016, aos 32 anos, e depois disso atuou principalmente no tratamento de pacientes graves. Desde fevereiro, esteve na linha de frente do atendimento a doentes com covid-19 nos dois hospitais da Grande São Paulo em que atuava. “A gente mal estava conseguindo conversar porque ela fazia plantão de 12 horas todos os dias, cada dia em um hospital”, conta Cilene.

A rotina extenuante de trabalho na pandemia era tanta que Tatiane, ao sentir os primeiros sintomas do coronavírus, achou que era cansaço físico relacionado ao trabalho. “Ela começou a se sentir ofegante quando subia a rua da casa dela, mas achou que era o cansaço acumulado pela sobrecarga de trabalho e pela correria. Só que no fim de março ela acabou piorando e foi internada. Foram 19 dias no hospital, 18 dias entubada”, conta a irmã.

Mesmo com 36 anos e sem doença crônica, Tatiane foi vencida pela covid e morreu em 16 de abril, deixando marido, dois filhos, os pais e dois irmãos. “Para ela, a enfermagem não era só um ganha-pão, era uma coisa que ela amava e lutou bastante para conseguir. Fazia tão pouco tempo que ela tinha conseguido realizar esse sonho e já partiu.”


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias