O Brasil enfrenta uma queda contínua nas coberturas vacinais das crianças nos últimos dez anos. É o que mostra o Anuário VacinaBR 2025, relatório do Instituto Questão de Ciência (IQC) com apoio da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e parceria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Entre os dados que mais chamam a atenção no documento, divulgado recentemente, está o fato de que nenhuma das vacinas do calendário nacional alcançou as metas do Programa Nacional de Imunizações (PNI) em todos os estados do país em 2023.
Além disso, existem desigualdades regionais e municipais: mesmo em estados com boas taxas de imunização, existem variações entre municípios, criando o que os pesquisadores chamam de “bolsões de baixa cobertura”.
Quais são os principais fatores que explicam essa queda? Para o pediatra Eduardo Jorge da Fonseca Lima, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e coordenador da Câmara Técnica de Pediatria do Conselho Federal de Medicina (CFM), não há uma resposta única.
“O que estamos vivendo desde 2015, mais ou menos, é uma espécie de ‘tempestade perfeita’. É uma crise com muitas faces, onde vários problemas aconteceram ao mesmo tempo. A desinformação explodiu, a confiança das pessoas diminuiu… Tivemos problemas de falta de algumas vacinas e a rotina dos postos de saúde muitas vezes não ajuda a vida dos pais. E, claro, a pandemia de COVID-19 veio para bagunçar tudo de vez”, resume.
“O resultado é esse alerta piscando, com o risco real de vermos doenças que estavam controladas, ou até eliminadas, voltando a circular”, acrescenta o especialista. Um dos exemplos mais emblemáticos é o aumento dos casos de sarampo no mundo inteiro. De acordo com o UNICEF, o número de ocorrências da doença cresceu 20% de 2002 para 2023. Em entrevista exclusiva à IstoÉ, Eduardo Jorge da Fonseca Lima lista cinco pontos para compreender e reverter o problema. Confira.
Pandemia da Covid-19
IstoÉ: De que maneira a pandemia afetou a vacinação infantil de modo geral?
Eduardo Jorge da Fonseca Lima: A crise sanitária global da COVID-19 teve um impacto profundo e negativo na vacinação de rotina. Durante os picos da pandemia, o medo de contaminação nos serviços de saúde, as restrições de circulação e a sobrecarga dos sistemas de saúde, que direcionaram seus esforços para o combate ao coronavírus, levaram a uma interrupção e adiamento da imunização infantil. Além disso, o debate público intenso e politizado em torno das vacinas contra a COVID-19 acabou por respingar na percepção sobre os imunizantes em geral, aumentando a desconfiança de uma parcela da população.
Fake news
IstoÉ: Como as fakes news impactam a confiança nas vacinas?
Eduardo Jorge da Fonseca Lima: O impacto se dá por meio de táticas específicas como apelo emocional e geração de medo. As notícias falsas raramente utilizam argumentos racionais. Elas exploram o medo, a principal emoção dos pais quando se trata da saúde dos filhos. Narrativas sobre mortes, sequelas graves e doenças supostamente causadas por vacinas, acompanhadas de imagens e relatos dramáticos, muitas vezes falsos ou descontextualizados, são mais impactantes do que dados estatísticos de eficácia. A linguagem pseudocientífica e o dom da oratória dão um ar de legitimidade e, além disso, os conteúdos de desinformação frequentemente usam jargões científicos, citam estudos fraudulentos – como o já desmentido artigo que ligava a vacina tríplice viral ao autismo – ou distorcem dados de pesquisas legítimas. Isso cria uma “névoa de dúvida” que confunde o público, fazendo com que a mentira pareça tão plausível quanto a verdade científica.
IstoÉ: Isso piorou depois da pandemia?
Eduardo Jorge da Fonseca Lima: Piorou, e muito. O que vimos foi um tsunami de informações e mentiras como nunca antes. A Covid-19 se tornou o centro de uma briga política e ideológica absurda. Quando lideranças importantes começam a questionar a ciência e a atacar as instituições de saúde, elas dão uma legitimidade que o movimento antivacina nunca teve. A desconfiança plantada contra a vacina da Covid “respingou” em todas as outras. Pais que começaram a duvidar da vacina da Covid passaram a questionar todo o calendário infantil.
Mudança na percepção dos riscos
IstoÉ: Existe ainda uma mudança na percepção de risco em relação a doenças preveníveis?
Eduardo Jorge da Fonseca Lima: Totalmente. Nós, como sociedade, perdemos a memória coletiva do que essas doenças representam. É o “paradoxo do sucesso”. Gerações inteiras cresceram, felizmente, sem ver uma criança com paralisia infantil, sem ouvir falar de um surto de sarampo que deixou sequelas neurológicas. A imagem dos “pulmões de aço” para as vítimas da pólio virou uma foto antiga, em preto e branco. Os programas de imunização foram tão eficazes no Brasil e no mundo que eliminaram ou reduziram drasticamente a circulação de doenças que, no passado, causavam pânico, sequelas e mortes. Com isso, a população ficou complacente.
E aí acontece a inversão do foco do medo. Como pediatra que está ali na sala de vacina, eu vejo isso todo dia. O medo dos pais se deslocou da doença, que é invisível, para a vacina, que é concreta. Nosso desafio hoje é comunicar um risco que as pessoas não enxergam mais. Portanto, hoje, em pleno 2025, é preciso relembrar constantemente que o vírus da poliomielite ou do sarampo não desapareceram do mundo; eles apenas foram mantidos sob controle pelas altas taxas de vacinação.
Logística e abastecimento
IstoÉ: Problemas logísticos, como falta de doses e horários restritos dos postos de saúde, também influenciaram essas taxas negativas dos últimos anos?
Eduardo Jorge da Fonseca Lima: Sim. Às vezes, o problema não é o pai que não quer vacinar: ele quer, mas não consegue. Pense na rotina de uma família trabalhadora. Como um pai ou uma mãe que bate o ponto vai levar o filho para vacinar num posto que fecha às cinco da tarde? É praticamente impossível sem ter que faltar ao trabalho. E some a isso a frustração de, no dia em que você consegue ir, ouvir que “a vacina X está em falta”. Tivemos, sim, períodos de instabilidade no fornecimento de algumas vacinas. Uma família que vai uma, duas vezes ao posto e não encontra a dose, simplesmente desiste. Apesar de o Programa Nacional de Imunizações (PNI) ser um dos melhores do mundo, o Brasil enfrentou períodos de instabilidade no fornecimento de alguns imunizantes nos últimos anos. Houve relatos e confirmações de desabastecimento ou fornecimento irregular de vacinas importantes, como a vacina contra a varicela, em diversas regiões do país. Pesquisas realizadas com gestores municipais, como as da Confederação Nacional de Municípios (CNM), confirmaram a falta de doses em milhares de cidades.
O impacto é sentido na ponta, mesmo quando o Ministério da Saúde informa ter os estoques regularizados em nível federal, problemas na distribuição para os estados e, principalmente, para os municípios podem causar faltas pontuais. Destaco ainda outras questões como os sistemas de Informação onde falhas e instabilidades nos sistemas de registro de vacinas (como o e-SUS PNI) podem dificultar o controle sobre quem foi vacinado e quais doses faltam, além de gerar dados de cobertura imprecisos.
Enquanto a desinformação convence uma parte da população a não se vacinar, os problemas logísticos impedem que outra parte, muitas vezes disposta e ciente da importância das vacinas, consiga proteger seus filhos.
Como mudar o cenário
IstoÉ: Quais medidas podem reverter a queda da vacinação infantil no país?
Eduardo Jorge da Fonseca Lima: Começando pelos horários flexíveis. É uma medida de respeito ao cidadão. Oferecer vacina à noite, aos sábados, domingo ou em locais de grande movimento como shoppings, como já vimos em Recife, por exemplo, é remover uma barreira óbvia para as famílias trabalhadoras.
A vacinação nas escolas é outra jogada de mestre. É levar a solução onde o problema está. Facilita a vida dos pais, garante que um grande número de crianças seja alcançado de uma vez e transforma a escola em um polo de educação em saúde, combatendo a desinformação na raiz.
Paralelamente, a vinculação com o Bolsa Família é uma ferramenta de saúde pública poderosíssima. Não é punição, é corresponsabilidade. É o Estado dizendo: “Eu ofereço o benefício e a vacina, e a família cumpre com seu dever de proteger a saúde dos seus filhos e de toda a comunidade”. Deixa claro que a vacinação não é apenas um direito, mas um dever dos pais para com a saúde de seus filhos e de toda a comunidade.
IstoÉ: Como recuperar a confiança da população nas vacinas?
Eduardo Jorge da Fonseca Lima: É impossível recuperar a confiança sem uma contra ofensiva forte às fake news. Isso inclui campanhas de comunicação claras e massivas do governo, parcerias com plataformas de mídia social para derrubar conteúdo falso, e o treinamento de profissionais de saúde para que se tornem agentes ativos na desmistificação de boatos durante as consultas.
O governo também precisa garantir o abastecimento contínuo de todos os imunizantes do calendário, evitando que os pais percam a viagem ao posto de saúde, o que gera frustração, desestimula o retorno e prejudica a credibilidade do programa. Em resumo, a solução para a crise vacinal não é única. Precisamos de uma combinação de ações para tornar a vacinação mais fácil, mais conveniente e, acima de tudo, mais confiável.