Eram duas horas da madrugada do dia 15 de março de 1985. O telefone tocou no apartamento funcional na Superquadra 309 Sul em Brasília, que era ocupado pelo senador José Sarney. Do outro lado da linha, o general Leônidas Pires Gonçalves que, no dia seguinte, assumiria como ministro do Exército. Quem atendia ao telefone era um Sarney nervoso, apavorado e em depressão. Leônidas lhe comunicava que os obstáculos estavam todos superados e que estava, então, tudo certo para que tomasse posse no Congresso Nacional, às 10 horas, como presidente da República. Sarney retrucou: “Leônidas, você sabe o meu ponto de vista. Não desejo assumir senão com o Tancredo.” Durante aquela noite, Sarney repetira esse mesmo desejo várias vezes, para mais de um interlocutor: achava que não tinha legitimidade para assumir, julgava que se deveria esperar que o presidente eleito Tancredo Neves, internado no Hospital de Base, se recuperasse para tomar posse. Leônidas perdeu a paciência e deu uma bronca naquele que seria o seu comandante a partir do dia seguinte: “Olha, Sarney, você sabe os problemas graves que estamos enfrentando. Você não pode mais criar nenhum caso. Todos estão unânimes nessa decisão.” O general terminou, então, de forma definitiva: “Boa noite, presidente!”

Terminava assim um dos momentos mais cruciais da história recente do País. Com a doença e posterior morte de Tancredo, o processo de redemocratização depois do fim da ditadura militar foi conduzido por um homem que vivia num quadro de depressão. Submetido a medicamentos que atrapalhavam a sua memória e capacidade mental. Inseguro quanto à sua legitimidade para estar no cargo. Contrariado e pouco à vontade no exercício das suas funções. Numa situação que o levava a momentos de tristeza tão grandes que, não poucas vezes, cresciam mesmo para um desejo de morte. O quadro acima não é o resumo de uma descrição feita por um adversário do ex-presidente José Sarney. É um cenário pintado pelo próprio Sarney, no esboço de um livro de memórias que ele vem preparando há alguns anos, com o título provisório de Testamento para Roseana. Sem previsão ainda de lançamento e longe de estar concluído, o rascunho produzido por Sarney é, por enquanto, um auto-retrato duro. É um importante documento sobre os primeiros momentos da democracia brasileira. ISTOÉ teve acesso às 177 páginas do esboço de autobiografia escrito por Sarney.

No capítulo que narra as articulações antes da sua posse, Sarney detalha que tudo, desde a internação de Tancredo no Hospital de Base com uma inflamação aguda do divertículo, aconteceu à sua revelia, numa situação que o coloca como total coadjuvante da sua própria história. Apenas alguns meses antes, ele era o presidente do PDS, o partido que dava sustentação ao último presidente da ditadura militar, João Baptista Figueiredo. Virou vice de Tancredo dentro das negociações que racharam o PDS e levaram à criação do PFL (hoje DEM). Mas tudo era previsto para que ele fosse um vice-presidente de fachada. E Sarney estava consciente dessa situação. “A Vice-Presidência era um cemitério de elefantes. Vice não opinava, não falava”, descreve ele.

Tancredo foi internado no Hospital de Base já na noite do dia 14. Desde o ano anterior, ele vinha sentindo dores no abdome e se recusava a se tratar. Temia que tivesse um câncer, e que o anúncio da doença pudesse comprometer os planos da redemocratização. A recusa em se tratar fez, porém, que Tancredo chegasse ao hospital já num quadro de grande gravidade. Tinha febre alta e estava cianótico (ou seja, com a pele arroxeada, conseqüência da alta presença de glóbulos brancos no sangue em virtude da infecção). Se não se operasse com urgência, entraria num quadro de septicemia. Não poderia, portanto, tomar posse no dia seguinte. Quando Sarney chegou ao Hospital de Base, ia já decidido a argumentar que se esperasse pela melhora de Tancredo. Mas os planos para ele já eram outros. Sentado num sofá na ante-sala do quarto de Tancredo, Ulysses disse a Sarney: “Temos responsabilidade com o País. Esta é a hora de tomarmos decisões. Você e eu temos de tomar as iniciativas. (…) Você é o vice-presidente e tomará posse, e tudo se processará como está programado”. A reação de Sarney dá a medida de como ele avaliava seu próprio papel naquele processo: “Você já pensou o que significa para o povo brasileiro, que esperou 20 anos por esta data, ver, em lugar de Tancredo, assumir eu, ex-presidente do PDS? Não, Ulysses. Eu tenho sentido de autocrítica e isto não me acrescenta nada.”

Não era apenas Sarney quem pensava assim. O presidente João Figueiredo considerava a posse do ex-presidente do PDS uma afronta. Uma tentativa de golpe chegou a ser arquitetada naquela noite pelo então ministro do Exército, general Walter Pires. Ela foi abortada de forma sutil pelo chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu. Pires estava decidido a resistir à posse. Foi então que soube do contragolpe sutil de Leitão de Abreu: “Ministro, por engano, os decretos de exoneração dos ministros que deveriam sair no dia 15, amanhã, saíram hoje, e o senhor não é mais ministro. Está apenas esperando o momento de transmitir o cargo ao General Leônidas. Ninguém lhe deve mais obediência”, respondeu o chefe da Casa Civil. “Não sou mais ministro? Então, está tudo perdido”, foi a reação de Walter Pires.

Além do capítulo que narra esses momentos cruciais da história recente do País, as memórias de Sarney contam detalhes do seu nascimento e infância, no dia 24 de abril de 1930, na cidade de Pinheiro, no Maranhão. Explicam, por exemplo, de onde vem o Sarney, nome de batismo de seu pai, que ele mais tarde incorporou como sobrenome. O nome foi encontrado pelo avô de Sarney, José Adriano da Costa, numa edição do Almanaque de Bristol, de 1901. Nomes estranhos não faltam à família de Sarney. Sua mãe chamavase Kiola, e ela tinha irmãos que se chamavam Puckiola e Tlueke. O nome do pai de Kiola? Assuéro.

 

A DEPRESSÃO
“No dia 15 de março de 1985, quando tomei posse no cargo de vice-presidente da República e imediatamente me investi no exercício da Presidência, a depressão que me acompanhava há dois anos não havia passado. A depressão (…) me fazia mergulhar em numa grande solidão e me fazia um ser infeliz”

SURPRESA NA POSSE
“Eu não estava alegre, não julgava minha chegada à Vice-Presidência da República um motivo de orgulho nem vaidade. A Vice-Presidência era um cemitério de elefantes”