Vida e morte severina: graças aos sete parentes do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), que vivem e sobrevivem espetados em gordos contra-cheques da Câmara e do governo, começa a morrer enfim o secular nepotismo que sangra os cofres públicos com a farra dos parentes bem empregados na República. Na quarta-feira 13, por decisão unânime da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), 36 parlamentares de todos os partidos resolveram desengavetar seis projetos antigos para reformular a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) proibindo o nepotismo nos Três Poderes. Ironicamente, o responsável por este milagre é justamente o arauto do empreguismo: Severino e sua descarada defesa da parentada bem empregada provocou um clamor popular que constrangeu o Parlamento e começou a matar uma velha praga da política nacional. “Cargo de confiança é para quem merece confiança”, dizia Severino, só admitindo apoiar uma lei antinepotismo desde que extensiva aos outros dois poderes – o Executivo e o Judiciário.

No fogo cruzado contra o empreguismo, acabou sobrando para o PT – o partido que, na oposição, sempre mirava o vasto cabide de empregos tucano. Seu alvo preferencial era FHC, que tornou uma filha, Luciana, sua secretária particular, e o genro, David Zylbersztajn, presidente da Agência Nacional de Petróleo (ANP). O partido gritava com vontade contra o nepotismo. Hoje, governista, o PT ficou mais emplumado com os laços de família e emprego. “Nunca vi tanta mulher de ministro trabalhando nos ministérios”, cutucou a deputada Zualaiê Cobra (PSDB-SP), na reunião da CCJ que aprovou a lei contra o nepotismo. Na Esplanada de Brasília, oito ministros do governo Lula engrossam hoje seus proventos com o contracheque do cônjuge, estrategicamente alojado em gabinetes mais distantes e discretos do Executivo ou do Congresso. O ministro recém-chegado Paulo Bernardo, do Planejamento, não compartilha nem a mesma cidade com a mulher.
Em compensação, Gleisi Hoffmann ganha um salário que é mais do que o
dobro (R$ 18 mil) do que o do marido como a poderosa diretora financeira da
maior hidrelétrica do mundo, a Itaipu Binacional, em Foz do Iguaçu (PR). “Além
do nepotismo, temos de combater o nepetismo”, alfinetou o deputado Antônio
Carlos Magalhães Neto (PFL-BA).

O mal transborda os limites do PT. Uma pesquisa do jornal Folha de S.Paulo constatou que 96 cônjuges de 391 deputados que se declararam casados foram contratados pela Câmara nos anos recentes, sem contar outros 23 casos de “nepotismo cruzado” – o parente contratado por outro gabinete para disfarçar o privilégio. O troca-troca envolveu, até dois anos atrás, dois deputados do Paraná: os líderes do PP, José Janene, e do PMDB, José Borba. Um José contratou a mulher do outro, ambas recebendo o maior salário do gabinete. “Mulher é mais do que parente. É o meu braço direito”, justificou Borba.

Triangulação – O cruzamento às vezes se faz entre partidos e cidades. “Pior do que o nepotismo é a triangulação”, acusa o senador Jefferson Perez (PDT-AM), citando o acerto entre o senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) e o prefeito petista de Aracaju, Marcelo Déda. O senador contratou a mulher do prefeito, Eliane Aquino Custódio, como secretária parlamentar, com salário de R$ 6,2 mil. Colocado diante da questão, o presidente do PT, José Genoino, reagiu com exemplar devoção ao gênero: “E eu vou impedir que mulher de petista trabalhe?” No agreste pernambucano, mulher de socialista também trabalha sem impedimentos. É o caso de Rubia Souza, mulher do prefeito do PSB de Santa Maria do Cambucá (180 quilômetros do Recife), Eliseu de Souza, que empregou a patroa como secretária de Educação. Eliseu arranjou a vida de outros três irmãos: botou Jacó nas Finanças, Reginaldo nas Comunicações e Clarisse no Planejamento. Outros dois irmãos, Nivaldo e Valdemir, foram alojados em diretorias com salário de secretário. O prefeito, que não é ingrato, arranjou um cargo de assessor especial para o pai, João Tunino. Numa cidade com 11 mil habitantes, o clã Souza se esparrama pelos 25 melhores cargos do município, abocanhando salários que vão de R$ 300 a R$ 1.200. Antes de perpetuar o sobrenome Souza na máquina municipal, o dedicado Eliseu lembrou-se da Lei de Responsabilidade Fiscal e demitiu 300 funcionários, em nome da austeridade que marca sua gestão.

Em 2000, segundo dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape), 35% dos cargos de direção e assessoramento nos três níveis mais elevados da área federal eram providos por indivíduos sem nenhuma vinculação permanente com o serviço público. No Legislativo e Judiciário, os números são mais imprecisos. Estimativas de cinco anos atrás indicavam que um de cada quatro senadores tinha parentes empregados em seus gabinetes e um de cada três deputados abrigava familiares em funções de confiança. Na caixa-preta do Judiciário, um quarto dos 65 ministros de tribunais superiores abririam espaço para parentes. Oficialmente, nenhum deles admite tal incidência. O próprio presidente do Superior Tribunal de Justiça, Edson Vidigal, encontrou uma irmã com cargo comissionado no STJ, quando se tornou ministro. Ao assumir a presidência, para espanto da própria família, exonerou a irmã, devolvendo-a ao Ministério da Educação, seu órgão de origem. Mostrando que os tempos estão mudando também sob a toga, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho começou a rastrear o nepotismo nos tribunais regionais do trabalho, nos últimos quatro anos. Entre 50 mil servidores, identificou 49 casos em sete tribunais. Corajosamente, divulgou os nomes de todos eles – inclusive o da juíza Maria Irisman Alvez Cidade, do TRT da 7ª Região, no Ceará, que agasalhou dois irmãos, três sobrinhos e um filho. O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Rodrigo Collaço, vai além do apoio à PEC contra o nepotismo: “É preciso publicar, no Diário Oficial, a lista de todos os cargos em comissão. Isso vai moralizar a administração e facilitar o controle da sociedade.”

Os ministros se defendem, dizendo que suas mulheres têm carreira consistente e vida profissional autônoma. “Minha mulher, Maria Rita, é funcionária do governo de São Paulo desde 1976”, esclarece o ministro José Dirceu, lembrando que antes consultou a Comissão de Ética Pública da Presidência sobre um eventual impedimento ético para sua transferência para Brasília. O PT, que antes torcia o nariz para os empregos de parentes, hoje desdenha da oposição mais crítica. “Eles tentam espalhar o mau cheiro para que todos fiquem impregnados”, afirma Genoino. A unanimidade nacional relembra ao PT, agora, o que até Severino Cavalcanti percebeu: parente, no governo, é serpente.