Os olhos de cor verde-esmeralda e os cabelos loiros de alguns índios ianomâmis impressionam os visitantes, uma grande comitiva do governo federal que percorreu a Amazônia nos últimos oito dias. A visita começa na sexta-feira 12, pelo posto do Exército em Maturacá (AM), próximo do Pico da Neblina, a montanha que reduz os homens a moscas em meio a árvores de até 50 metros de altura. “Por que as crianças indígenas aqui são loiras?”, questiona a ministra chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. “É a miscigenação, ministra”, devolve um assessor. “O padre era italiano”, brinca um general. A aparente tranqüilidade do posto do Exército esconde vários problemas graves da região. A grande maioria deles decorrente de um único fator: a ausência do Estado. Próximo dali, uma das aldeias abriga 1,2 mil índios, a metade crianças. “Morreram mais de dez crianças ianomâmis este ano de diarréia”, reclama o padre salesiano João Batista da Silva. “Aqui, a Funai e a Funasa não funcionam e as crianças passam fome.” A situação descrita pelo padre anima Dilma a expor as suas críticas sobre o funcionamento interno do governo. Sobra um petardo para um órgão administrado pelo Ministério da Saúde do PMDB: “A Funasa não faz nem ao lado da casa dela, vai fazer aqui?”. No total, a comitiva governamental percorreu 11 mil quilômetros pelos 19 postos do Exército nessa terra esquecida que é a fronteira norte do País.

 Próximo de Maturacá, em São Gabriel da Cachoeira, a comitiva depara com outro grande desafio para a região, conhecida como “Cabeça do Cachorro”, no extremo noroeste da Amazônia: o tráfico de drogas. E, novamente, as primeiras vítimas são os índios. Os traficantes começaram a cooptá-los para passar a droga pela fronteira. Nos últimos anos, o tráfico tem migrado para a região de São Gabriel da Cachoeira. Entra pelo rio Negro. Em troca da droga, os comerciantes da região abastecem a Colômbia com alimentos. “O maior problema da região hoje é que os traficantes escolheram um local onde a Polícia Federal ainda está se estruturando”, diz o governador do Amazonas, Eduardo Braga (PSB). “O índio bota um paneiro (um tipo de cesto de vime, com alças) nas costas e anda 15 dias dentro da mata com a droga; eles prestam o serviço.” Só dois policiais federais estão de plantão na cidade, fazendo serviço burocrático em aeroporto.

Em dois aviões da FAB, a comitiva segue para Querari (AM), dentro da Boca do Cachorro, na divisa com a Colômbia. Mais um posto do Exército. E mais índios nas proximidades. “Estamos esquecidos aqui no Brasil”, reclama o agente de saúde Eduardo Gonçalves. Das seis crianças indígenas que nasceram este ano, uma morreu de diarréia e as outras clamam por nutrição adequada. Do outro lado da fronteira, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) estão a apenas dez quilômetros de distância. Por onde se anda na Cabeça do Cachorro, há cheiro das Farc. Os guerrilheiros entram em território brasileiro como civis. De novo, a troca de alimentos por drogas. Os comerciantes sobem rio acima com açúcar, café, arroz e óleo. E descem com cocaína. “As Farc se abastecem aqui, e a moeda de troca é o tóxico”, diz o comandante militar da Amazônia, general-de-exército Augusto Heleno Pereira, ex-comandante da Força de Paz da ONU no Haiti.

Dentro do avião que transporta a comitiva, o general Heleno aborda outro dos problemas identificados pelos militares que atuam na fronteira brasileira: a ação na região das organizações não-governamentais supostamente ambientais. “O governo deu R$ 35 bilhões para as ONGs nos últimos sete anos. E o Exército só recebeu R$ 6 bilhões para investimento no período”, reclama. Para a inteligência do Exército, muitas dessas organizações estão servindo de testa-deferro para fazer biopirataria e preparar as áreas indígenas para a futura exploração de minérios. Além das organizações supostamente sem fins lucrativos com presença nem sempre clara na região, a inteligência do Exército, com o apoio da Polícia Federal, está mapeando milhares e milhares de estrangeiros que passaram a mudar para as cidades fronteiriças da Amazônia. Para fazer o trabalho, os militares se passam por habitantes locais. Em Tabatinga, na divisa seca com a Colômbia, a PF pede que todos os donos de hotéis enviem no final da tarde uma lista com nomes e números de documentos dos hóspedes. Foi com base neste levantamento que foi preso no ano passado o traficante português Márcio Fernandes, com quatro quilos de cocaína na mochila, quando se passava por estudante. “Isso melhorou muito a nossa segurança”, comenta a dona do Hotel Takana, Neide Teixeira. Mas Tabatinga ainda é uma cidade aberta às irregularidades. Os motociclistas que estão sem capacete do lado brasileiro vestem-no assim que entram na Colômbia. Retiram o capacete quando voltam para o Brasil. Essa rotina é a evidência menos danosa da diferença do rigor da lei entre o Brasil e a Colômbia. Um ponto preocupante disso é que os comerciantes colombianos estão comprando vários bares no Brasil para abrir prostíbulos, pela dificuldade que vêm tendo de manter tal atividade do lado colombiano.

A falta de emprego é uma das principais preocupações. Na terça-feira 16, a estudante Caroline Ramos, 14 anos, levava para a escola o filho David, de três meses, por não ter onde deixar o menino. Ela cursa a sétima série na escola pública de Cruzeiro do Sul, no Acre. O marido da garota, Manoel da Silva, está desempregado há cinco anos. “E o pior é que aqui a gente não ganha Bolsa Família”, diz ele. O comandante da Brigada de Infantaria da Selva em Tabatinga, general-de-brigada Carlos Roberto Peixoto, lamenta que não haja perspectivas para uma grande parcela da população que vive nas fronteiras com a Colômbia, Peru e Bolívia. “Precisamos fortalecer a estratégia de resistência, e o grande problema é que a miséria traz vulnerabilidade”, diz o general. Na falta de outras perspectivas, o próprio Exército vira a solução. Mais de 90% dos soldados da fronteira noroeste são índios. Embora a probabilidade seja considerada ainda relativamente pequena, a Amazônia já é considerada pelos militares brasileiros um possível cenário de guerra, pelo interesse econômico e ambiental que hoje representa para o mundo. E a possibilidade de resistência imaginada ali, dadas as condições do território, é de guerra de guerrilhas. Algo semelhante ao que aconteceu na Guerra do Vietnã. Nesse sentido, o Exército aposta muito no aproveitamento de seus soldados-índios: eles conhecem como ninguém a selva; são exímios caçadores e se orientam facilmente pelo sol. Conhecem todos os venenos e remédios da floresta, e lá podem sobreviver por meses e meses com pouquíssimos recursos.

O maestro dessa primeira grande visita do governo às fronteiras da Amazônia é o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Durante a visita, a ex-guerrilheira Dilma Rousseff foi recebida pelo Exército com a música A conquista do paraíso, de Vangelis. Jobim levou a tiracolo o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Machado, estratégia para tentar sensibilizar a equipe econômica a liberar dinheiro. Carregou os comandantes das três Forças Armadas. Ao entrar nas trincheiras fardado, Jobim lembrava, fisicamente, a figura do coronel Kurtz, vivido por Marlon Brando no filme Apocalipse now. Deu tapas na onça mascote do Exército, segurou macacos, pisou na lama. Em tom levemente ufanista, ele afirmou que os europeus não podem dar lição de moral sobre a Amazônia, já que destruíram todas as suas florestas. Em todos os discursos, o ministro realçava a máxima do herói indígena Sepé Tiaraju, imortalizado no poema épico O Uraguay: “Esta terra tem dono”, repetia Jobim. Em 1750, o herói morreu em defesa da região das Missões. Sepé perdeu a guerra porque não tinha armas. Mas os fuzis do Exército têm 43 anos de idade e alguns batalhões estão racionando alimentos.

Os repórteres viajaram a convite da Força Aérea Brasileira