O que seria de uma pessoa sem a sua memória? Um indivíduo desligado de seu mundo, sem condições de interagir com os que o cercam porque não os reconhece. Os casos mais clássicos neste campo são os dos pacientes com mal de Alzheimer, a doença degenerativa cuja principal característica é a lenta e progressiva perda das lembranças até um período final de absoluto isolamento. Para a maioria da população, cenários como esses parecem distantes. Mas a realidade pode não ser tão confortável assim. Nas clínicas especializadas, é cada vez maior o número de pessoas que recorrem à ajuda de médicos e psicólogos porque simplesmente começaram a se esquecer com espantosa facilidade de compromissos rotineiros, do local onde deixaram as chaves e o celular, do horário da consulta marcada para o filho. São indivíduos entre 45 e 50 anos, no auge da carreira profissional, um perfil bem diferente do que se costumava ver anos atrás. Os “brancos” freqüentes se tornam irritantes e constrangedores. É como se fossem o ato mais supremo de traição de uma memória que, a esta altura da vida, ainda deveria estar próxima do ideal. “Antes, atendia quase exclusivamente pacientes mais velhos, com doenças que levam aos problemas de memória. Hoje, tenho muitos casos de jovens que não apresentam limitações orgânicas”, conta o psiquiatra Paulo Mattos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A razão desse fenômeno é clara. O excesso de informações que chegam via e-mail, televisão e jornais produz uma imensa sobrecarga no cérebro, o órgão responsável pelo armazenamento das lembranças. Sem conseguir dar conta de tantos dados, ele seleciona o que consideramos prioritário. O resto fica para trás, guardado em alguma gaveta.

Esse cenário – e principalmente o desfecho que ele trará – tem preocupado os especialistas. É por isso que a ciência disparou recentemente uma espécie de cruzada pela reconstrução da memória. Vários trabalhos estão sendo conduzidos mundo afora nesse sentido e estão produzindo informações que darão origem a remédios e novas formas de tratamento. Um dos mais animadores foi publicado na edição online da revista científica Cell duas semanas atrás. Os cientistas conseguiram reconstituir a memória, mesmo que tenha sido em cobaias. O trabalho foi feito na Universidade Columbia (EUA) comparando o desempenho em testes com ratos portadores de limitações e outros saudáveis antes e depois da injeção de uma enzima chamada Uch-L1. A falta dessa substância, identificada como parte importante da cadeia bioquímica envolvida no processamento das lembranças, implica dificuldades para se recordar. Numa primeira etapa, os animais doentes falharam nos testes de memória. Após terem recebido a enzima, mostraram a mesma capacidade de memorização das cobaias sadias. “Esta novidade entusiasma porque parece ser um tratamento efetivo”, disse Michael Shelanski, principal investigador do estudo.

Os esforços também têm resultado em constatações tão surpreendentes quanto preocupantes. A primeira é a comprovação da associação entre memória e diabete. Diversas pesquisas recentes demonstram que níveis elevados de açúcar no sangue, característica principal da doença, estão de fato relacionados a dificuldades cognitivas e de memória. “Constatou-se que há uma relação inequívoca entre os dois problemas”, afirma o geriatra Fábio Nasri, do Centro de Memória do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Agora, o que se quer investigar mais a fundo são as razões que levam a enfermidade a provocar mais esse prejuízo. Nesse momento, por exemplo, um grande estudo com esse objetivo está sendo conduzido pela Universidade de Edimburgo, na Escócia. A tese mais aceita é a de que o déficit de memória nesses pacientes seria resultado de lesões causadas pela doença nos microvasos sangüíneos do cérebro. Com essa rede de irrigação danificada, os neurônios envolvidos no processamento da memória teriam seu funcionamento prejudicado. “Embora as causas ainda não estejam elucidadas, o fato é que portadores de diabete estão em grande risco de desenvolver problemas de memória”, afirma Mark Strachan, da universidade escocesa.

Há nessa questão mais um grande problema: o desconhecimento por parte de médicos e pacientes sobre a possibilidade dessa conseqüência. “Ainda não existe uma preocupação entre os especialistas em relação a isso. Mas deveríamos prestar mais atenção a esse aspecto”, defende Antonio Carlos Lerário, secretário-geral da Sociedade Brasileira de Diabete. De fato, de posse dessa informação, os diabéticos ficam sabendo que têm ainda mais motivos para se cuidar. É como pensa, por exemplo, o analista de sistemas Adriano Lunsqui, 37 anos, portador de diabete. “Nunca tive dificuldades para me lembrar das coisas, mas ficarei mais atento a isso também”, conta.

A outra constatação da ciência – essa ainda mais nova do que a comprovação da relação entre memória e diabete – é a associação das lembranças com a obesidade. “Estudos recentes têm demonstrado que o excesso de peso pode comprometer a capacidade de recordação”, informa o psiquiatra e especialista na área Cássio Bottino, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Nesse caso, de novo, a responsabilidade seria dos danos aos vasos sangüíneos causados pela doença também. Mas há outras hipóteses em investigação. Uma delas foi relatada por cientistas da Universidade Saint Louis (EUA) em um artigo divulgado há dois meses. Segundo os pesquisadores, pode estar envolvida nessa confusão a leptina, hormônio que avisa o cérebro que se está saciado e que, em muitos casos de obesidade, está em baixa quantidade. Eles chegaram a essa conclusão após estudos em cobaias demostrarem que doses extras da substância melhoram significativamente a memória.

A ênfase em estudar tanto as relações da diabete quanto da obesidade com a memória faz todo sentido. Afinal, são duas das grandes ameaças à saúde em todo o planeta e agora, como se vê, verifica-se que promovem outros malefícios além dos conhecidos
danos cardiovasculares, por exemplo. Mas outra parte da ciência se debruça na busca de respostas que fechem o ainda intrincado quebra-cabeça que é o mecanismo pelo qual se forma e se consolida a memória e os compostos envolvidos nesse processo. Vários passos importantes foram dados nessa área. O mais recente foi a identificação, pela primeira vez, de uma substância específica responsável por um prejuízo importante à memória, na verdade uma forma da proteína beta-amilóide.

A descoberta foi publicada na revista científica inglesa Nature, uma das mais importantes do mundo, e entusiasmou os especialistas. “Agora podemos pensar em um remédio que iniba o funcionamento dessa proteína e também em meios de prevenção”, afirma Michela Gallagher, pesquisadora do Instituto Johns Hopkins (EUA) e integrante da equipe que conduziu o trabalho. De fato, imaginar que uma pílula seja capaz de restaurar a memória ou impedir que ela se perca é animador. Embora ela ainda não exista, há algumas tentativas de criação em andamento. Uma delas usa uma droga batizada de CX-17, criada na Universidade da Califórnia (EUA) e em testes ainda muito preliminares. Ela estimularia a produção do glutamato, substância que facilitaria o aprendizado e a memória. Outra opção que vem sendo testada é usar o que já se conhece. Na última semana, por exemplo, um artigo publicado no jornal da Associação Americana de Neurologia relatou o sucesso da droga rivastigmina, indicada para Alzheimer, no tratamento de pacientes que sofreram trauma craniano e apresentavam lapsos.

Outra linha importante de pesquisa é descobrir o impacto que o ambiente e as circunstâncias têm sobre a formação da memória. Um trabalho da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) divulgado há duas semanas mostrou uma interação interessante. Segundo o estudo, a antecipação de um evento desagradável, como se submeter a um exame doloroso, aciona áreas da memória antes que a experiência aconteça. E o fato é registrado como uma coisa ruim. Dessa maneira, a simples expectativa de que algo desconfortável vai ocorrer agrava a lembrança que se terá do que aconteceu. E isso tem implicações sérias. Um candidato a uma vaga de trabalho pode sentir tanto medo antes da entrevista para o emprego que essa será a sensação gravada no cérebro. Se ele continuar desempregado, poderá voltar a apresentar o mesmo sentimento antes dos encontros profissionais, o que certamente prejudicará sua performance. Outra pesquisa, divulgada há dois meses pela Universidade da Califórnia (EUA), mostra que se o indivíduo aprende algo enquanto realiza muitas outras coisas – situação muito comum hoje em dia – a chance de se recordar da informação é muito pequena. “Fica-se sujeito a se lembrar mais das circunstâncias do que da informação”, explica Russel Poldrack, coordenador do trabalho.

Hoje, o tratamento para falhas de memória depende das causas que levam ao problema. Entre as mais importantes e relacionadas diretamente à saúde do cérebro estão o mal de Alzheimer e lesões provocadas por derrames. Mas muitos casos também têm origem em problemas como ansiedade, depressão e excesso de álcool. Para cada uma, há uma estratégia diferente de abordagem. Uma das situações mais comuns atualmente são os lapsos derivados do stress por causa do excesso de trabalho. A receita para esses pacientes passa obrigatoriamente por uma reorganização na rotina. “As pessoas devem priorizar as informações. Em vez de lerem todos os e-mails, devem se concentrar nos importantes”, exemplifica a neuropsicóloga Camila Prade, do Hospital Albert Einstein. Organização é o que não falta no trabalho da advogada Lilian Pessina, 24 anos. Ela usa duas agendas e também mantém pastas diferentes nas quais arquiva documentos por prioridade. E ainda espalha lembretes por toda a papelada. “Se não fizesse isso, certamente perderia o prazo de muita coisa”, conta.

Há outras recomendações úteis. O uso de agendas e palmtops, a organização de uma lista de afazeres prioritários, a separação de um tempo para o lazer e atividade física também são fundamentais. Outra saída é ficar menos tempo em frente à tevê, conforme apontou uma pesquisa feita semanas atrás na Austrália com 30 mil pessoas. Descobriu-se que os indivíduos que viam tevê menos de uma hora por dia se saíram melhor nos testes, assim como os que tomavam menos de dois copos de bebida alcoólica diariamente. Além disso, aprender coisas novas aprimora a memória, segundo trabalho divulgado em agosto. A pesquisa foi feita na Universidade College London, na Inglaterra, e mostrou que a exposição a experiências diferentes ativa um sistema cerebral que regula o funcionamento da dopamina, uma substância que ajuda na retenção de informações. “Se não exercitamos nossa inteligência, nossa memória realmente fica comprometida”, explica o neurologista Henrique Goldberg, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. E, na última semana, os cientistas foram surpreendidos com mais uma descoberta. Ingleses e indianos verificaram que ervas usadas na medicina ayurvédica – milenar prática de tratamento adotada na Índia – melhoram a agilidade mental, inclusive a memória. Chegaram a essa conclusão após testes realizados com vítimas de Alzheimer. Agora, eles querem identificar os compostos benéficos para que, no futuro, possam ser usados em remédios.