O fim da dinastia Romanov é um daqueles episódios da história russa que, de tanto ser encobertos pela revolução bolchevique, em outubro de 1917, inspirou as mais fantasiosas versões. Depois de meses isolados em uma casa de campo, o último czar, Nicolau II, e sua família foram fuzilados em julho de 1918, na cidade de Iekaterinburgo, mais tarde chamada Sverdlovsk. Mesmo com o desmantelamento da antiga União Soviética, em 1991, as marcas do esplendoroso cotidiano dos Romanov continuaram restritas ao Kremlin, o complexo arquitetônico que abriga igrejas, museus e palácios bem no centro de Moscou. Uma mostra com 200 obras dessas coleções – entre jóias, ícones, pratarias e vestimentas – começa a desembarcar em São Paulo na terça-feira 12, para a exposição A herança dos czares, que o Museu de Arte Brasileira da Faap abrirá no final do mês, depois de ambientá-las em réplicas de três salões do Kremlin.

Cada salão corresponderá a um século da dinastia Romanov, iniciada em 1613, com o czar Mikhail Fyodorovich. “Os ambientes serão em amarelo, reproduzindo o classicismo russo, como no Kremlin”, adianta o arquiteto Jorge Elias, responsável pelo cenário, que por duas ocasiões percorreu os salões originais em busca de inspiração. Como apogeu da mostra, ele planeja instalar numa sala redonda o ovo de Páscoa em ouro, prata, diamantes, marfim e vidro com que Nicolau II presenteou sua mulher, Alexandra, em 1913, durante as comemorações do tricentenário da dinastia. A obra, que exibe retratos de 18 integrantes da família Romanov, foi criada pelo joalheiro Carl Fabergé (1846-1920), titã da ourivesaria internacional. A maioria da população passava por maus pedaços, mas, quatro anos antes da reviravolta política, os Romanov mantinham o secular hábito de comemorar.

O poderio dos czares poderá ser constatado em um bordado antigo, com o mapa do império russo. Como outras mostras de arte estrangeira realizadas pelo museu – sobre o Egito, em 2001, e sobre a China, em 2002 – a preocupação em contextualizar tem prioridade. Essa é uma das marcas de Celita Procopio de Carvalho, presidente do Conselho Curador da Faap, desde que ela assumiu o comando das exposições, em 1991. Quando menina, Celita se sentia extremamente entediada ao visitar museus, embora percorresse com a família as melhores instituições do mundo. “Desde cedo percebi que, para apreciar uma exposição, é preciso entrar no clima da época”, diz. “Além de permitir essa viagem no tempo e no espaço, apresentar peças autênticas num cenário adequado estimula a interatividade.”

Nos sete anos que passou negociando para trazer A herança dos czares ao Brasil, Celita teve que usar e abusar de seu jogo de cintura. Até advogados possivelmente ligados à temida máfia russa tentaram tirar casquinha da iniciativa. Chegaram a convocar a Washington um diretor financeiro da Faap, como se falassem em nome dos museus do Kremlin. “Eles pediram uma exorbitância para liberar a exposição”, conta. “A conversa não prosperou porque somos uma fundação e, como nossas exposições são gratuitas e abertas a escolas, só pagamos pelo transporte e seguro.” Entre os que ajudaram a desmontar a arapuca dos advogados estava Elena Gagarina, a diretora-geral dos museus do Kremlin, que já confirmou presença na abertura da mostra paulistana. Para os interessados nos tempos da corrida espacial, ela é uma personagem singular. Além de saber tudo sobre a arte dos czares, Elena conhece como ninguém a história do primeiro cosmonauta, seu pai, Iuri Gagarin (1934-1968). Dois períodos tão distintos quanto atraentes da Rússia.