Depois de passar cinco dias fechada, a porta do Bar do Caíque, na rua Gama 977, em Nova Iguaçu, foi reaberta na quarta-feira 6. Ali, na noite de 31 de março, seis pessoas foram assassinadas a tiros na maior chacina já ocorrida no Rio de Janeiro – a ação dos criminosos, que seriam policiais militares, se estendeu à cidade vizinha de Queimados e resultou em 30 mortes. O dono do bar, Paulo Picanço Tostes, 56 anos, abriu as portas só para tirar o freezer e os últimos equipamentos. Depois, fechou para sempre. “Não tem mais sentido manter isso aqui.” Na noite da matança, Tostes saiu do local dez minutos antes de começarem os disparos. Ele locava o ponto para Carlos Henrique Assis, o Caíque, que teve a mulher assassinada. “Agradeço a Deus por estar vivo. Sempre acontecem algumas mortes por aqui, mas dessa vez o povo não entende o motivo.” É fácil explicar a naturalidade com que Tostes fala da rotina de execuções: dos 726 corpos que deram entrada no Instituto Médico Legal de Nova Iguaçu de janeiro a março, 341 foram vítimas de armas de fogo. “Amedrontada, a população se acostumou à lógica de que bandido bom é bandido morto, que transforma a vítima em réu”, analisa o sociólogo José Cláudio de Souza Alves, autor do livro Dos barões ao extermínio – história da violência na Baixada Fluminense. Mesmo acostumada aos extermínios, dessa vez a população ficou perplexa – e também os políticos. “Quando vim para cá recebi ameaças, mas imaginava que até esses grupos tivessem limites. Agora descobri que limites não existem”, desabafa o prefeito de Nova Iguaçu, Lindberg Faria (PT).

José Cláudio de Souza Alves vê a chacina como um degrau a mais de uma bárbara escalada. “Nos anos 60, comerciantes e políticos criaram um aparato de extermínio que se tornou incontrolável e reage quando seus interesses são contrariados.” A principal linha de investigação para identificar os assassinos segue essa direção. Os exterminadores seriam PMs inconformados com o rigor do comandante do 15º Batalhão, coronel Paulo César Lopes, e com a operação Navalha na Carne, na qual o governo estadual pune os desvios de conduta dentro da polícia. Em uma definição clássica, uma ação terrorista. “Nessa ação indiscriminada, visaram um alvo simbólico. Queriam desafiar as autoridades constituídas”, diz o sociólogo Luiz Jorge Werneck Viana, do Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro. A apuração levou à prisão de seis PMs, entre eles o soldado Carlos Jorge Carvalho, lotado no 20º Batalhão, em Mesquita. Foi Carvalho quem na noite da chacina pediu emprestado a um amigo um Gol prata que testemunhas viram nos locais de extermínio. O parente de uma vítima reconheceu o soldado. A polícia do Rio pretende se basear em provas periciais para evitar o que aconteceu em Vigário Geral, quando a acusação, sustentada em provas testemunhais, deu margem à absolvição da maioria dos acusados. O Instituto Carlos Éboli recebeu 72 armas de policiais para perícia, além de cartuchos e fragmentos das balas. “Se necessário, faremos exames de DNA”, afirma o diretor da Polícia Técnica, Roger Ancilotti.

Apesar do ritmo acelerado da investigação, testemunhas da chacina e familiares das vítimas continuam apreensivos. “Sinto medo, não sei se os matadores vão caçar as famílias”, diz Lucia Helena Barbosa Rodrigues, cujo filho, Luiz Jorge Barbosa, 27 anos, foi assassinado no lava-jato onde trabalhava, em Queimados. Lúcia também perdeu seu primo, Fábio Vasconcelos, alvejado próximo à rua onde mora. “Perguntem a qualquer pessoa do bairro. Meu filho era honesto, muito trabalhador. Meu primo também”, garante ela, preocupada com a tendência local de ver as vítimas de assassinato como prováveis criminosos. Queimados é um município pobre, que se emancipou em 1990. Normalmente aparece no noticiário graças ao alto índice de violência. “As pessoas enterradas aqui são pobres, há muitos recém-nascidos”, conta o coveiro Luiz Carlos Lisboa. Dos 29 enterros do mês de março, cinco foram de vítimas de arma de fogo e outros cinco, natimortos. Na região, violência e falta de infra-estrutura conspiram contra a vida. A taxa de mortalidade infantil em Queimados é de 28 por mil (no Rio é de 18,6) e a renda per capita é uma das mais baixas do Estado: R$ 357.

A situação social de Nova Iguaçu é um pouco melhor, mas a maior parte dos bairros é paupérrima. É o caso da Posse, onde fica a rua Gama. Todas as casas são simples e não há opções de lazer. Estabelecimentos como o Bar do Caíque servem como ponto de encontro das famílias. As igrejas evangélicas se multiplicam. Há uma escola da prefeitura, Emilio Garrastazu Médici, que nos dias seguintes à chacina quase não recebeu alunos. De dia, as ruas estão mais vazias do que o normal e à noite estão desertas. “A Baixada é um lugar fervilhante, com gente alegre nas ruas. Agora, quando escurece, as pessoas se entocam em casa”, lamenta o prefeito Lindberg. Espera-se que, desta vez, os criminosos recebam a punição merecida, mas em pelo menos um ponto eles venceram: o medo, hoje, mora em Queimados e Nova Iguaçu.