É de tirar o fôlego. Nas barbas do presidente Lula, desenrolou-se na semana passada o maior, mais surpreendente e rumoroso escândalo eleitoral dos últimos tempos. Sob a moldura de R$ 1,7 milhão em dinheiro, que seria usado para a compra de um dossiê contra o candidato a governador de São Paulo José Serra, o que se viu foi uma estonteante seqüência de prisões, confissões e exonerações entre homens da mais estrita confiança do presidente. A temperatura da eleição presidencial, em seu momento decisivo, estourou os termômetros mais resistentes. A detonação do escândalo aconteceu às sete da manhã da sexta-feira 15, com a prisão num hotel em São Paulo de dois até então desconhecidos assessores da campanha presidencial. A partir dali, homens do círculo íntimo de Lula, alguns conhecidos nacionalmente, foram descobertos em meio à trama, entre eles o coordenador-geral e presidente do PT, Ricardo Berzoini. As primeiras pesquisas eleitorais após a eclosão da crise, divulgadas até a noite da quinta-feira 21, não registravam mudanças substanciais no quadro que garante a Lula uma eleição em primeiro turno. Mas também é certo que o efeito da bomba lançada contra o presidente por seus próprios amigos só terá seus estragos corretamente medidos no domingo 1º de outubro, quando os brasileiros irão às urnas. Contra o presidente, o escândalo valeu pedidos de impugnação da candidatura e impeachment do cargo, feitos pela oposição. Em sua defesa, Lula alegou que nada sabia, afastou os auxiliares pegos em flagrante e classificou como “setor de burrice” a área de sua campanha que montou a operação contra Serra, conhecida internamente como setor de inteligência. O cavalo de batalha representado pela descoberta do esquema petista continuará a ser montado até o dia da eleição – e suas pegadas perseguirão Lula mesmo que ele alcance a vitória em primeiro turno. “Não haverá um minuto de paz para o governo até que se explique a origem desse dinheiro”, sentenciou o presidente do PSDB, Tasso Jereissati.

A semana que abalou as eleições presidenciais começou na quinta-feira 14. Às 11 horas daquela noite, a Polícia Federal prendeu em Várzea Grande, perto de Cuiabá, o empresário Paulo Roberto Trevisan, tio de Luiz Antônio Vedoin, dono da Planam. A empresa é o pivô da máfia das ambulâncias que agia no Ministério da Saúde. Trevisan tentava viajar para São Paulo com uma pasta em cujo interior havia seis fotografias e uma fita de DVD – o tal dossiê contra José Serra. Na manhã seguinte, às sete horas, a PF acertou em cheio no alvo. Prendeu em São Paulo, em dois apartamentos do hotel Íbis, nos arredores do aeroporto de Congonhas, os assessores petistas Valdebran Carlos Padilha e Gedimar Pereira Passos. Com o primeiro, foram encontrados R$ 758 mil e US$ 109 mil. Outros R$ 410 mil e mais US$ 139 mil eram guardados por Gedimar em seu quarto. No mesmo dia, em Cuiabá, Vedoin foi preso pela PF sob a acusação de ter participação na tentativa de venda do dossiê. Na sexta-feira à tarde, Valdebran e Gedimar depuseram na PF em São Paulo e entregaram o primeiro nome dos participantes do esquema petista: Freud. Não sabiam dizer o sobrenome, mas não foi difícil. Tratava-se de Freud Godoy, assessor especial da Presidência da República, com salário de R$ 6,3 mil. Era a primeira peça a trazer a crise para a intimidade do presidente Lula. Freud, afinal, fora responsável pela segurança de outras campanhas presidenciais de Lula, tinha gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto – o mesmo piso da sala presidencial – e, ainda, costumava caminhar pelas manhãs com o presidente. Era um de seus confessores. A proximidade entre ambos ficou patente por um telefonema dado por Lula a Freud, no qual combinou-se a exoneração do assessor. “Não estou entendendo. Qual o fundo de verdade?”, perguntou Lula. “Pode dormir tranqüilo”, disse Freud ao presidente, adiantando que iria pedir a exoneração.

O cerco ao presidente fechou-se ainda mais nas horas seguintes. Na terça-feira 19, Oswaldo Bargas, ex-secretário executivo do Ministério do Trabalho, foi enrolado na trama do dossiê contra Serra. Ele seria um dos intermediários no processo de venda. Amigo de Lula há mais de 20 anos, Bargas é uma figura conhecidíssima
no movimento sindical do País. Como secretário de Relações Internacionais da
CUT, ele é considerado responsável pelos melhores acordos feitos pela central sindical ligada ao PT com organizações de outros países. Esses acordos envolveram cooperação financeira. Sempre prestigiado dentro da CUT e do PT,
ele assumiu um posto-chave no Ministério do Trabalho e afastou-se meses atrás para participar da campanha de Lula. “Pensei que ele ainda estava carimbando
lá no Ministério”, disse Lula, surpreso, durante uma tensa reunião na quarta-feira 20, no Palácio da Alvorada, na qual o presidente decidiu afastar de sua campanha todos os envolvidos até ali no escândalo.

Além de Bargas, outro que foi pego na mesma armação foi Jorge Lorenzetti. Este não é um velho amigo do presidente, mas dele soube se aproximar como poucos. Apresentado a Lula pela senadora Ideli Salvatti, de Santa Catarina, Lorenzetti ganhou o presidente pelo paladar. Tornou-se, em razão de seu toque para assar peças de costela de boi, o churrasqueiro oficial da Granja do Torto. Nesta condição, conseguiu um cargo no Banco Estadual de Santa Catarina (Besc). Presidente da ONG Unitrabalho, captou verbas oficiais de cerca de R$ 18 milhões na gestão de Lula. Ele também fazia parte do tal setor de inteligência, e tal como os demais foi defenestrado.

A queda mais ruidosa foi a do presidente do PT, Ricardo Berzoini, do cargo de coordenador-geral da campanha. Bargas informou que Berzoini sabia das negociações em torno do dossiê. Diante de um furioso Lula, que voltou às pressas da Assembléia Geral da ONU, em Nova York, para cobrir a sua própria retaguarda, Berzoini tentou se justificar de modo prosaico. Disse que estava entrando num elevador quando foi informado por Bargas sobre o dossiê. Completou afirmando que ouviu mal a mensagem. O problema é que não colou. Ao sair da reunião, Berzoini, que assumira a campanha de Lula com a missão de limpar o nome do PT, enlameado pelo escândalo do mensalão, estava destituído do cargo de coordenador. Seu substituto, Marco Aurélio Garcia, adotou como primeira medida a extinção do setor de inteligência ou, como quer Lula, de burrice da campanha. Também perdeu o posto, estilhaçado pelo escândalo, o coordenador da campanha do senador Aloizio Mercadante ao governo paulista, Hamilton Lacerda.

Enquanto os petistas cortavam, mais esta vez, na própria carne, do lado de fora
do partido os problemas diante de Lula se avolumavam. O Tribunal Superior
Eleitoral abriu uma investigação para apurar se o presidente cometeu crime
eleitoral. A PF, enquanto isso, está rastreando a origem do dinheiro apreendido
com os petistas. Conclui-se, nas investigações da semana passada, que os reais foram sacados em agências dos bancos Safra, BankBoston e Bradesco, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A suspeita é de que tenham vindo de contas pertencentes a laranjas do PT, usados para abrigar dinheiro não contabilizado. Os dólares também têm sua origem investigada. As notas são novas, e chegaram dos Estados Unidos às mãos dos petistas sem que tivessem entrado em circulação. A comprovação de um caixa 2 de campanha, mesmo após uma eventual vitória de Lula nas eleições, pode custar-lhe o futuro mandato. “O caso é de impeachment”, resumiu o prefeito do Rio, César Maia.

A ópera-bufa parecia ter seu roteiro completado quando despontou a figura do
ex-diretor de Gestão de Risco do Banco do Brasil, Expedito Afonso Veloso. Ele
foi citado nos depoimentos de Valdebran e Gedimar à PF como um dos negociadores, pelo PT, da compra do dossiê contra Serra. Veloso só não foi exonerado do BB porque é funcionário de carreira, mas sofreu afastamento das funções até que as investigações se completem. Da campanha de Lula, foi mais
um a ser colocado para fora.

As trapalhadas petistas dominaram o noticiário, repercutiram fora do País e, é
claro, foram exploradas pelo candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, no horário eleitoral gratuito. Era a oportunidade que ele precisava para abrir todas as suas baterias contra Lula. “É preciso dar um basta”, clamou o tucano. Em detalhes, seu programa mostrou as ligações diretas e íntimas dos petistas com o presidente. A estratégia para esta semana é martelar a mesma tecla. As primeiras pesquisas, feitas simultaneamente ao desenrolar do escândalo, mostraram Lula variando entre 50% (Datafolha) e 49% (Ibope) das intenções de voto, contra 29% e 30%, respectivamente, para Alckmin. Os especialistas estão divididos entre os que acreditam que o efeito eleitoral, contra Lula, não tarda a chegar, e os que apostam que há pouco tempo até o próximo domingo para uma virada radical nos prognósticos. A ver. O certo é que Lula levou uma carimbada que alega ter
vindo pelas costas, mas que, seja como for, lhe abre uma longa estrada de problemas pela frente.