Madrugada do dia 6 de dezembro de 1976. Fazenda La Villa, município de Mercedes, na Argentina. Maria Teresa Goulart acorda o motorista do expresidente João Goulart, Roberto Ulrich, conhecido por Peruano. "O doutor Jango está passando mal", grita ela. Em busca de ajuda, Peruano corre até a cidade mais próxima, 14 quilômetros distante. Volta com o pediatra Ricardo Rafael Ferrari. O médico examina o expresidente, vira-se para Teresa e informa: "O seu marido está morto." No atestado de óbito, coloca como causa mortis apenas uma lacônica palavra: "Enfermedad" (doença, em espanhol). A ação das autoridades argentinas e brasileiras nos dias seguintes jamais permitiu que tal diagnóstico pudesse ser aprofundado. Foi proibida a autópsia do corpo do ex-presidente. Essas circunstâncias fizeram com que a família e alguns amigos de João Goulart sempre desconfiassem que sua morte talvez não tivesse uma causa natural. Trinta e dois anos depois, o depoimento de Mario Neira Barreiro, um uruguaio que era agente do Grupo Gama, o serviço de inteligência daquele país, reacende a hipótese de um possível assassinato de Jango. Barreiro está preso no Rio Grande do Sul por roubo, formação de quadrilha e posse ilegal de armas. Com base nesse depoimento, os filhos de Jango, João Vicente Goulart e Denize Goulart, ingressaram no Ministério Público com um pedido de abertura de inquérito civil para que as circunstâncias da morte do ex-presidente voltem a ser investigadas.

O que Barreiro conta é digno de um filme de espionagem. Segundo ele, Jango teria sido envenenado com um tipo de cloreto desidratado transformado em comprimido e colocado em meio aos medicamentos que ele tomava para o coração. Esse veneno acelera o fluxo sangüíneo, provocando hipertensão. Horas depois da ingestão, leva a um derrame ou a um infarto. Durante 48 horas, vestígios ficam no organismo. E por isso houve a proibição de autópsia. Os remédios eram enviados para o Hotel Liberty, em Buenos Aires, onde Jango ficava quando estava na capital argentina. Ali é que o veneno teria sido colocado num dos frascos por um agente infiltrado no hotel.

No ano passado, João Vicente Goulart esteve com Barreiro, acompanhando uma equipe da TV Senado que produzia um documentário sobre Jango, ainda não concluído. Na entrevista, João Vicente identificou-se e o ex-agente uruguaio, impressionado com a sua presença, começou a falar. A história que ele conta parece mirabolante demais – não fosse por outros elementos já comprovados que reforçam a impressão de que seu depoimento não deve ser simplesmente desconsiderado.

Primeiro, está comprovado que as ditaduras da América do Sul naquela época colaboraram entre si para a produção de documentos conjuntos e para a prisão e extradição de presos políticos. Segundo, é fato também que naquela mesma época políticos de esquerda que foram depostos de seus cargos começaram a ser eliminados. E o terceiro elemento é que algumas dessas mortes parecem filmes de 007. O general Carlos Prats, comandante-em-chefe do Exército do Chile no governo Salvador Allende, foi morto num atentado a bomba em Buenos Aires em 1974. O exministro do Interior e da Defesa do Chile Orlando Letelier teve morte semelhante em Washington, em 1976. E o ex-presidente chileno Eduardo Frei Montalva morreu em 1982 por envenenamento com gás mostarda.

Em 2000, uma comissão especial da Câmara investigou as circunstâncias da morte de João Goulart. "Não há como afirmar, peremptoriamente, que Jango foi assassinado", escreveu à época o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), relator da comissão. "Mas será profundamente irresponsável, diante dos depoimentos e fatos aqui consolidados, concluir pela normalidade das circunstâncias em que João Goulart morreu." Diante do fato novo, Miro acha que o depoimento de Barreiro deve ser investigado: "Ele só apresentou um conjunto de palavras, mas que, somado aos demais fatos já sabidos, não deve ser desconsiderado. O princípio da investigação é a dúvida. E dúvida é o que não falta."

"O AGENTE BARREIRO PODE SER UM DOS ÚLTIMOS ELOS VIVOS DESSAS AÇÕES"
João Vicente Goulart, filho de Jango

O que impressionou João Vicente Goulart foram alguns detalhes da narrativa de Barreiro. Ele sabia, por exemplo, o número do telefone da fazenda de Jango. E documentos que foram repassados ao filho do ex-presidente demonstram que havia agentes infiltrados na fazenda e que Jango era monitorado 24 horas por dia. ISTOÉ teve acesso à leitura de dois desses relatórios, produzidos em 1975 pelo Serviço Nacional de Informações do Brasil (SNI). O primeiro informa que documentos pessoais de Jango foram subtraídos "de forma clandestina", entre eles cartas do ex-presidente Juan Domingo Perón e do ex-deputado Ulysses Guimarães. O segundo é o relato de um certo "Agente B", que acompanhou de perto e fotografou a festa de aniversário do ex-presidente.

"Até agora, o esforço para a apuração das coisas tem sido familiar e pessoal, mas, daqui para a frente, não há mais muito em que a família possa avançar", diz João Vicente Goulart. Na ação, ele sugere que o Ministério Público tire Barreiro do Rio Grande do Sul e o transfira para Brasília, onde ele poderia narrar tudo o que sabe e esclarecer não apenas o caso relativo ao seu pai mas as circunstâncias do desaparecimento de outras pessoas durante as ditaduras sul-americanas. "Ele pode ser um dos últimos elos vivos dessas ações."