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IMPACTO Prédio da sede da China Central Television já virou referência na arquitetura

Se fosse para levar em conta o que disse o líder comunista da República Popular da China Mao Tsé-tung (1893-1976), os chineses poderiam ser considerados, hoje, desafetos de sua própria terra. Mao declarou, em discurso em 1926, que a “burguesia compradora” seria um dos inimigos a ser combatidos. Porém, depois dele veio Deng Xiaoping (1906-1997), que redimiu todos os conterrâneos daquele imenso território asiático que adoravam, secretamente, um ideograma diferente, o LV da Louis Vuitton – por exemplo. A partir da abertura econômica de Deng, na década de 70, os que tinham tendências capitalistas puderam sair do armário e consumir, consumir, consumir. A China, a república comunista mais capitalista que existe, é, hoje, um país em transformação. As portas mais ou menos abertas para o luxo que chega da Europa e dos Estados Unidos escancaram o triunfo do consumo selvagem. Basta ver os carrões importados que abarrotam as ruas de cidades como Pequim. “Os chineses estão comprando carros como símbolo de status individual, não por necessidade”, disse um pequinês que não quis se identificar. O último relatório Life Report, de 2006, diz que o país tem seis milhões de consumidores de bens de luxo e o Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimentos do mundo, prevê que a China deverá consumir 29% dos produtos de luxo existentes no mundo até 2015. Vale frisar que já há chineses com fortunas superiores a US$ 16 bilhões. E a classe média emergente deverá somar, em 2025, 220 milhões de habitantes com renda anual entre 3.700 e 9.300 euros, segundo a empresa de consultoria americana McKinsey.

A prosperidade impressiona os visitantes de metrópoles como Pequim, Xangai ou Shenzhen, onde há prédios imponentes e altíssimos, viadutos modernos e uma multidão lotando as ruas com seus celulares. Mas há um malogro atrás disso: 70% dos chineses vivem nos campos, trabalham na agricultura e não costumam subir as vertiginosas escadas rolantes das arquiteturas urbanas e modernas. É conhecida a distância entre a tecnologia de ponta que faz das grandes cidades uma espécie de cenário futurista e a rotina miserável de quem é mão-de-obra barata internacional. A aproximação da Olimpíada, em agosto, dá grande visibilidade a essa dicotomia. Mais do que nunca, Pequim está repleta de obras. Há guindastes por todos os lados. Apenas três das nove novas linhas previstas para ser inauguradas até o evento esportivo – não são estações, são linhas! – estão concluídas. As seis restantes seguem a todo vapor numa extensão final de 200 quilômetros e quase US$ 10 bilhões investidos.

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MARCA O acesso das massas ao lazer é um dos símbolos da China moderna

Para quem acha que falta muito pouco tempo para tanta obra, um lembrete: a marca da China moderna é justamente a velocidade. É impressionante como eles conseguem subir prédios inteiros em pouquíssimos meses. Por conta da reformulação de infra-estrutura na cidade e mesmo das obras específicas da Olimpíada, uma cena torna-se comum nos fins dos dias pelas ruas da cidade: operários, pessoas simples e destoantes do universo high tech, costumam sentar nas calçadas e, com olhos esbugalhados, assistem a programas nas gigantescas telas que ocupam as laterais de vários andares de prédios.
 

Em volta do Estádio Nacional de Pequim – já apelidado de Ninho devido ao formato de ninho de pássaros –, um canteiro esburacado e muitos tapumes separam os visitantes do local que será palco da abertura e do encerramento dos jogos. A megaconstrução que poderá receber 100 mil pessoas durante a Olimpíada teve investimento de US$ 420 milhões. Quem ainda pretende assistir a algum dos jogos, deve preparar o bolso: as entradas estão custando até 25 vezes mais caras nas mãos dos cambistas. Os guindastes também trabalham em um conjunto de prédios de luxo nas imediações cujos apartamentos custam até US$ 7 milhões.

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CONSUMO Loja da Bulgari em Pequim, onde o trânsito abriga de bicicletas a Rolls-Royce

Perto do Ninho, o Centro Aquático Nacional – que também já ganhou o apelido de Cubo de Água (gelo) porque é exatamente essa a sua aparência – teve um orçamento mais modesto para os padrões chineses, mas ainda bastante alto: US$ 100 milhões. O guia turístico Liu Qing Liang sabe que vai trabalhar muito, mas está feliz: “Será um momento especial na China!” Uma transeunte concorda em dar uma rápida entrevista para ISTOÉ, através de um tradutor de mandarim, a língua oficial. “É a hora de os chineses realizarem seus sonhos. Estou curiosa”, diz a moça de roupa vermelha, coincidentemente a cor do Partido Comunista e predominante em espaços públicos. Mas, ao ser perguntada sobre seu nome, ela sai em disparada. A explicação é simples: chineses não estão acostumados à liberdade de expressão e têm medo de falar demais e acabar na prisão. As transformações ainda não são suficientes para dar ao povo a certeza de que a liberdade abriu as asas. Até porque, isso ainda não aconteceu. Mesmo.

Liberdade é algo mais distante, ainda, das mulheres. Porém, no processo de mudanças em curso, são elas mesmo que têm experimentado verdadeiras revoluções. As mulheres evoluíram da quase insignificância para o começo da conquista da independência. Estão longe de ser cidadãs de primeira classe, mas se libertam aos poucos do sistema patriarcal que as domina desde os tempos das dinastias, como a Shang (1600-1050 a.C.). Devido à política do filho único implantada há quase três décadas, muitos pais abortaram fetos do sexo feminino – segundo dados oficiais, mais de oito milhões de meninas foram abortadas – por acreditarem que um filho homem teria mais chances no mercado de trabalho. Dizem que muitas foram mortas após o nascimento, o que significa, então, assassinato. Mas especialistas afirmam que, por mais danos que a política do filho único possa ter trazido, o saldo é melhor do que se o país tivesse quase dois bilhões de pessoas, em vez do 1,3 bilhão atual. O resultado dessa matança é que há, em média, três homens para cada mulher, hoje. Calcula-se que em 2020 a maioria dos homens estará em idade núbil. Mas os 30 milhões a mais de homens vão casar com quem, se faltam mulheres na China?

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O vice-diretor do Instituto de Estudos sobre a Mulher, Liu Bohong, não acredita que esse desequilíbrio seja resultado da política de planejamento familiar: “É mais provável que resulte da idéia bem enraizada da cultura chinesa de que homens são superiores às mulheres.” Por outro lado, à medida que o país se torna uma grande potência capaz de ultrapassar os Estados Unidos até 2030 – essa é a estimativa de especialistas –, mais as mulheres se preparam e avançam no mercado de trabalho. No livro As boas mulheres da China, a autora, Xinran, diz que os chineses ricos “estão mais exigentes: uma mulher sem diploma vai conseguir atrair apenas algum pequeno negociante. Quanto melhor o seu nível de educação, maior a chance de fisgar um grande empresário”.

A chamada economia de mercado da China é a que mais cresceu no mundo. Cresceu tanto que, agora, tenta- se reduzir seu ritmo de 11% para 8% ao ano. Segundo o analista político Vladimir Pomar, isso ajudará a “diminuir a pressão sobre seus recursos e sobre sua infra-estrutura e a evitar tensões inflacionárias e sociais”. O crescimento do país não foi acompanhado por políticas ambientais rigorosas e o resultado é o altíssimo índice de poluição que degrada todo o país. Pequim é uma cidade com paisagem esmaecida por uma espécie de neblina permanente, na qual é praticamente impossível ver o azul do céu. Ainda assim, os chineses são longevos e têm vida de qualidade graças à alimentação à base de raízes, peixes, legumes e, provavelmente, à milenar paciência chinesa. É, sem dúvida, um belo país.

REFLEXOS DA TRAGÉDIA

Depois dos violentos confrontos com monges tibetanos que a transformaram em vilã internacional – a ponto de a tocha olímpica ser aviltada mundo afora porque a Olimpíada será realizada em Pequim –, a China passa a ser vista como vítima devido ao terremoto que atingiu o sudoeste do país no dia 12 de maio e causou a morte de quase 70 mil pessoas. À sombra da tragédia, o governo emite um importante sinal de mudança dos tempos e permite alterações na lei do filho único que vigora desde a década de 70 para os casais. Os pais que perderam ou tiveram o filho mutilado pelo pior tremor de terra dos últimos 30 anos poderão gerar novo bebê ou adotar uma criança órfã. Todo o país se esforça para minorar o sofrimento das famílias que foram desfeitas. Cartazes espalhados por metrôs e outros espaços públicos solicitam doações por celular, através de números 0800, pela internet etc. Ao rever sua política de controle da natalidade nesse momento de comoção para todos os chineses, a China mostra que a flexibilização, enfim, faz parte do governo.

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MUDANÇA Mães como Zheng Rhongchong poderão ter outro filho