Quem se emocionou com o belo filme Cinema Paradiso, do italiano Giuseppe Tornatore, vai encontrar semelhanças na história. Aos 87 anos, Nelson Fortunato é uma figura famosa de Nova Europa, município com dez mil habitantes no interior de São Paulo. Lá, seu nome está ligado ao cinema. Começou a carreira como projecionista no Cine Progresso e comprou, anos mais tarde, o Cine Ideal. Mas um dia o cinema desabou, após um fim de semana de casa cheia. Mesmo assim, não quis lar-gar a área. Assumiu o projetor do Cine Jangada, o último da cidade.

Além disso, anunciava as notícias do dia pelos alto-falantes direcionados para a praça principal, num tempo em que a cidade ainda não tinha emissora de rádio. Com o tempo, o Jangada também fechou as portas. Paulo Augusto Vieira, 24 anos, era criança quando a última sala deixou de existir, mas a voz de Fortunato ficou marcada em sua memória. Hoje, Paulo narra a trajetória do projecionista no curta-metragem O alto-comunicador falante. “O documentário envolveu a comunidade e permitiu que Nova Europa redescobrisse sua relação com o cinema”, conta. “Nunca imaginei aparecer na tela grande”, entusiasma-se o personagem. A obra será lançada no Rio de Janeiro no dia 16 de outubro. Integra o projeto Revelando os Brasis, do Ministério da Cultura, criado para democratizar o acesso aos meios de produção de cinema e permitir aos moradores de cidades com até 20 mil habitantes a possibilidade de filmar suas próprias histórias.

Quarenta histórias foram escolhidas entre 870 inscritas. Depois de duas semanas de curso de capacitação, com aulas de roteiro, direção, produção, câmera, som e montagem, os realizadores selecionados voltaram para suas cidades com a incumbência de, em sete dias de captação e outros sete de edição, transformarem seus roteiros em filmes de até 15 minutos. As obras serão reunidas em uma caixa de DVDs, com histórias colhidas em cidades de 21 Estados. “Nosso interesse é plantar um espírito de produção cultural e envolver as comunidades em novos projetos”, explica a coordenadora Beatriz Lindenberg. Os 40 vídeos produzidos no ano passado percorrem realidades tão diversas quanto a vida de um senhor que mora há 30 anos em uma caverna na cidade capixaba de Muqui e o cotidiano de uma pescadora de lagosta da praia da Redonda, no Ceará. Nesta segunda edição, até uma aldeia indígena do Acre será cenário de uma das histórias, inscrita por um jovem kaxinauá.

Se Fortunato, o personagem do vídeo de Paulo Augusto Vieira, dedicou a vida ao cinema, a professora Maria do Carmo Silva Ferreira, 41 anos, nunca havia entrado em um. A única sala que existiu em sua cidade, Batalha, com 15 mil habitantes, no sertão de Alagoas, fechou antes que ela tivesse idade suficiente para freqüentá-la. Durante o período de capacitação, ela pôde finalmente assistir a uma sessão de curtas sentada em uma das poltronas de veludo do Cine Odeon, no Rio, um dos mais antigos do País. Voltou para casa inspirada. Seu vídeo, Infância no sertão, mostra a rotina de crianças que dividem o dia entre o trabalho na roça e as brincadeiras na caatinga. “Muita gente no Sudeste acha que os menores do semi-árido são encardidos e sem cultura. Quis mostrar que isso não é verdade”, diz.

Outro realizador, Dedé Carnaúba, 40 anos, mostrou que é verdade tudo o que se conta sobre o mais endiabrado morador de Carnaúba dos Dantas, no Rio Grande do Norte. Os oito mil habitantes da cidade estão ansiosos para assistir ao vídeo Pedro de Zé Maria: um carnaubense cabra da peste e recordar as aventuras vividas pelo protagonista. Na obra de Dedé, testemunha ocular de muitas das histórias, os “causos” são narrados por Seu Pedro e pelos moradores mais velhos do povoado. Até 20 anos atrás, o “cabra” vencia apostas realizando proezas como comer marimbondo, engolir parafuso e rolar em moita de urtiga. “Uma vez, para amedrontar um homem com quem havia arrumado briga, ele derramou o próprio sangue num copo de cachaça e bebeu na frente dele”, revela Dedé. O projeto Revelando os Brasis prevê a exibição dos filmes nas cidades em que eles foram realizados. Aos 78 anos, Pedro de Zé Maria reservou lugar na primeira fila. E promete fazer algumas das suas artes antes da sessão. Os carnaubenses estão na expectativa de que seja mais uma para relembrar no futuro.