Presidente da CPI sobre a exploraçãosexual de adolescentes, senadorarevela pressão de políticos paralivrar a cara de colega

Por trás de uma beleza exótica que remete a Iracema, personagem-título do romance clássico de José de Alencar que conta a história da primeira heroína do Ceará, a senadora Patrícia Saboya (PPS) mostra uma garra que surpreende os menos avisados. Em seu primeiro mandato, ela tem se especializado em temas relacionados à infância e à adolescência, combatendo especialmente a exploração sexual. Sua atuação de maior destaque foi na presidência da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, na qual conseguiu indiciar mais de 200 pessoas, incluindo até políticos como o prefeito de Goiás Velho, Boadir Veloso, que foi denunciado por abuso sexual de nada menos que sete moças menores de idade. Entre os resultados da CPI, ela destaca o reforço no combate ao turismo sexual, a conscientização da sociedade sobre as violências cometidas contra crianças e adolescentes de ambos os sexos. Destaca também as mudanças no Código Penal para tapar na legislação brechas que permitem a exploradores sexuais de crianças e a traficantes de pessoas escapar da Justiça. Ela conta que o pior momento da CPI foi o caso do vice-governador do Amazonas, Omar Aziz, acusado de abusar sexualmente de adolescentes. Seu nome foi incluído no relatório, mas, por um voto, ele não foi indiciado, escapando, por ora, da Justiça. “Houve muita pressão por parte da bancada do Amazonas e de outros parlamentares, criando situações extremamente constrangedoras”, recorda.

ISTOÉ – Durante mais de um ano, a sra. presidiu a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Quais foram os maiores problemas encontrados?
Patrícia Saboya

Ao longo do trabalho da CPI, nós descobrimos que a prática da exploração sexual de crianças e adolescentes está disseminada em todo o País. Chegamos à conclusão de que eram necessárias mudanças na legislação para, sem uma visão moralista, alterar o Código Penal, que já tem mais de 60 anos e deixa muitas brechas a práticas criminosas. Isso dificulta a apuração e a punição de muitos crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes. Diante disso, os membros da CPI, em conjunto com o Ministério Público e instituições como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), advogados e especialistas na área, formularam proposta de mudança na legislação.

ISTOÉ – Quer dizer que uma das primeiras conclusões da CPI foi relativa à necessidade de modernizar o Código Penal?
Patrícia Saboya

Sim. Desde o início chegamos à conclusão de que a legislação
precisaria ser adaptada aos dias e costumes de hoje. Um bom exemplo é o artigo
do Código Penal referente ao estupro. Pelo Código, estupro é um crime cometido apenas contra as mulheres. Unificamos a legislação sobre estupro com atentado violento ao pudor e eliminamos a menção a mulheres, mudando o texto do artigo para “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso”. Durante os trabalhos da CPI, que esteve em 22 Estados, recebemos muitas denúncias, casos horrorosos,
de meninos vítimas de violência e exploração sexual. Isso deixou claro para todos que havia necessidade de mudar a lei. Também percebemos que havia a necessidade de separar exploração sexual de abuso sexual, que na maior parte
dos casos ocorre dentro das casas das pessoas.

ISTOÉ – Quer dizer que uma das primeiras conclusões da CPI foi relativa à necessidade de modernizar o Código Penal?
Patrícia Saboya

Sim. Desde o início chegamos à conclusão de que a legislação
precisaria ser adaptada aos dias e costumes de hoje. Um bom exemplo é o artigo
do Código Penal referente ao estupro. Pelo Código, estupro é um crime cometido apenas contra as mulheres. Unificamos a legislação sobre estupro com atentado violento ao pudor e eliminamos a menção a mulheres, mudando o texto do artigo para “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso”. Durante os trabalhos da CPI, que esteve em 22 Estados, recebemos muitas denúncias, casos horrorosos,
de meninos vítimas de violência e exploração sexual. Isso deixou claro para todos que havia necessidade de mudar a lei. Também percebemos que havia a necessidade de separar exploração sexual de abuso sexual, que na maior parte
dos casos ocorre dentro das casas das pessoas.

ISTOÉ – Sobre a exploração sexual disseminada pelo País, ela está interligada ao tráfico de pessoas?
Patrícia Saboya

Nós não investigamos especificamente o tráfico de pessoas, e sim a exploração sexual como um todo. E, nessas investigações, deparamos com denúncias graves de tráfico de crianças e adolescentes em todo o País. Existem nada menos que 131 rotas internacionais de tráfico de pessoas a partir ou passando pelo Brasil, 78 rotas interestaduais e 32 rotas intermunicipais. A constatação desses fatos levou a mais uma mudança no Código Penal, que foi transformar em crime o tráfico de pessoas dentro do País. Antes, aliás, só era crime quando mulheres eram levadas para fora do Brasil. Mudamos para pessoas, sem distinção de sexo. Com a nova legislação, já aprovada no Senado e agora tramitando na Câmara, o tráfico de pessoas dentro do Brasil passa a ser crime, o que deverá ajudar no combate à exploração sexual. Porque o que ocorre hoje é uma criança ou adolescente ser levado de uma cidade pequena no interior para uma cidade maior, de lá para uma capital, outro Estado e, no final, muitas vezes para o Exterior.

ISTOÉ – O que causa a exploração sexual de crianças e adolescentes? O que gera esse fluxo sempre renovado de meninas e moças sendo levadas à prostituição, à exploração?
Patrícia Saboya

Especialistas nessa área consideram que a pobreza e a miséria são fatores muito fortes que levam à exploração sexual e ao tráfico de pessoas. Eu acho que existe ainda uma questão cultural, um machismo. Mas não se deve esquecer que esse é um problema mundial. Exploração sexual, tráfico de pessoas e turismo sexual são problemas que atingem muitos países. Durante os trabalhos da CPI, deparamos com crianças e adolescentes bastante vulneráveis, filhos de gente muito pobre que, às vezes, só descobria o que ocorria em suas casas através das investigações da CPI. Vimos tantas vidas estraçalhadas, de crianças que se vendiam por centavos. Na minha cidade, Fortaleza, vemos crianças pequenas se oferecendo a turistas estrangeiros. Moças de 18, 19 anos se vendendo para pagar universidade, roupas da moda. Acho que é uma junção de várias coisas. Existem a pobreza, a miséria, mas também os desejos. Todos são bombardeados pelos mesmos apelos de consumo. Não há diferença entre o que deseja uma criança pobre e uma de classe média. Chega de fazer políticas pobres para os pobres. Temos que dar as mesmas oportunidades para todos. Mudar a cabeça dos legisladores e do governo. Se isso acontecer, certamente vai diminuir o número
dos atraídos pela exploração sexual.

ISTOÉ – A sra. se referiu a meninas se oferecendo a turistas estrangeiros em Fortaleza, que foi considerada a capital do turismo sexual.
Patrícia Saboya

Infelizmente, o Nordeste está sendo conhecido no mundo não apenas pela nossa culinária, pelas nossas belezas naturais, mas também pelo turismo sexual. Fortaleza é uma das cidades onde esse tipo de turismo, de baixo nível, que não gera emprego, que não gera renda, existe em grande proporção. O importante é que a CPI conseguiu trazer o tema para o debate em termos nacionais. Antes, havia uma tendência de se colocar o assunto debaixo do tapete.

ISTOÉ – Quem fazia isso?
Patrícia Saboya

Autoridades. Pessoas ligadas ao turismo. Governadores, prefeitos, que se negavam a discutir o assunto. Ficavam preocupados com a possibilidade de que os outros visitantes se afastassem de suas cidades e Estados, caso fossem tachados de centros de turismo sexual. Mas o importante é que houve uma mudança de mentalidade. Hoje, em qualquer lugar do Nordeste já começa a haver uma reação contra o turismo sexual. Durante nossas visitas com a CPI aos Estados e capitais do Nordeste, conseguimos a adesão dos vários segmentos do turismo nas audiências públicas. Mas que ainda existem resistências, isso é verdade.

ISTOÉ – Como se muda esse quadro do turismo sexual?
Patrícia Saboya

Não estamos falando de uma visão moralista. As pessoas, quando fazem uma viagem, estão na expectativa de encontrar uma paquera, um romance. O que deve ser combativo é a exploração comercial do sexo, a exploração de crianças e adolescentes. E isso é responsabilidade do Estado, da sociedade, que não pode tolerar esse tipo de coisa. O governador Lúcio Alcântara, do meu Estado, impediu recentemente a chegada de um vôo charter vindo da Europa, lotado por homens, que tinham comprado um pacote de turismo sexual. Esse tipo de atitude precisa fazer parte da preocupação de todos os governantes. Não basta denunciar, tem que fazer acontecer as coisas. Esse tipo de turismo sexual não ocorre apenas no Nordeste. Há festas periódicas no Amazonas, Carnaval fora de época, festivais, etc. em que muita gente vai a esses eventos para fazer turismo sexual.

ISTOÉ – Que tipo de autoridades têm envolvimento com o turismo sexual?
Patrícia Saboya

Vimos de tudo durante os trabalhos da CPI. Políticos, pessoas ligadas ao Judiciário, líderes religiosos. Envolvidos como clientes ou como agenciadores. E indiciamos mais de 200 pessoas no relatório final da CPI, entregando seus nomes e todo o material das investigações ao Ministério Público. Conseguimos, também, a criação de uma comissão, formada por três senadoras e três deputadas, que, durante um ano, vai acompanhar os desdobramentos e os processos iniciados a partir do resultado da CPI.

ISTOÉ – Quando a sra. fala em políticos envolvidos com a exploração de menores e nas pressões sofridas pela CPI, está se referindo a algum caso específico?
Patrícia Saboya

O caso mais forte foi o do Amazonas. Houve uma intensa mobilização da bancada do Estado e de alguns parlamentares para proteger o vice-governador Omar Aziz, que era suspeito de envolvimento em exploração sexual de menores. Ele acabou absolvido por um voto e foi o único caso de pessoa suspeita a não ser indiciada pela CPI, apesar de ter seu nome incluído no relatório final. (No dia da votação, adiada duas vezes, a senadora estava sendo submetida a uma cirurgia. O voto de Minerva – o resultado era sete a sete – foi do presidente em exercício, senador Ney Suassuna). A verdade é que, em todos os casos, houve muito critério e cuidado por parte da relatora, deputada Maria do Rosário (PT-RS). O caso do vice-governador do Amazonas teve ampla repercussão e sua inclusão no relatório obedeceu ao mesmo padrão de seriedade adotado em toda a CPI. Foi o momento mais difícil da CPI para mim.

ISTOÉ – Houve outro caso que chamou a atenção, envolvendo políticos?
Patrícia Saboya

Foi o episódio envolvendo o prefeito Boadir Veloso. Ele foi acusado de abuso sexual de sete moças menores de idade e acabou aproveitando uma brecha no Código Penal para se safar. Ele conseguiu sete noivos para as moças e, pelo Código, quando uma mulher submetida à violência ou abuso sexual se casa com o responsável ou outro homem, o crime se extingue. Esse é outro artigo que mudamos, acabando com essa saída. Agora, o crime não se extingue até o julgamento do processo. Quando a CPI foi a Goiás Velho, em dois aviões pequenos, tivemos de pousar em uma cidade vizinha porque o prefeito mandou encher a pista de pouso de pneus. O caso atraiu tanto a atenção da cidade que o vigário cedeu a matriz local para a realização da audiência.

ISTOÉ – Que outra mudança na legislação a sra. destaca como resultado da CPI?
Patrícia Saboya

Criamos a ação penal pública incondicionada. Isso quer dizer que, se alguém sabe que uma criança ou adolescente está sendo molestado sexualmente, pode fazer a denúncia ao Ministério Público. Hoje, é preciso que a própria pessoa ou seus responsáveis, que muitas vezes são os suspeitos, façam a denúncia.

ISTOÉ – Internet e pedofilia se tornaram uma mistura explosiva. O que a CPI considera que deve ser feito?
Patrícia Saboya

Já mudamos a legislação dizendo que é crime produzir, fotografar e filmar cenas de violência sexual e pedofilia. Pedofilia é uma doença como o alcoolismo que precisa ser tratada. Se simplesmente se prende o pedófilo, ele, quando for solto, voltará a cometer crimes, provavelmente de forma mais violenta. Junto com a Polícia Federal, queremos que os provedores de internet guardem os arquivos com os acessos dos usuários por dois anos e não apenas por três meses, como é hoje. As redes de pedofilia e pornografia se formam e acabam com muita rapidez. A investigação é demorada.

ISTOÉ – Parece que só se ataca a exploração sexual para valer quando se atinge toda a rede, dos exploradores aos clientes. A sra. concorda com isso?
Patrícia Saboya

Tem que ser uma decisão de Estado e, nesse aspecto, o presidente
Lula está comprometido com nossa luta. A situação é muito grave, pois, de acordo com o ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos), existem mais de mil municípios no País onde é comprovada a exploração sexual de crianças e adolescentes. Temos que mudar isso, mudar a cultura. A CPI se constituiu em um momento muito importante, pois está contribuindo para a mobilização e conscientização da sociedade.