É sempre assim: toda vez que o País vive os efeitos de uma grave crise política, lideranças partidárias sacam fórmulas redentoras para tirar o Brasil da travessia do deserto e levá-lo à Terra Prometida. Veja-se o que aconteceu logo depois do Collorgate, quando políticos emplumados e membros da intelligentsia nacional retiraram do fundo do baú uma idéia velha, o parlamentarismo – experimentada no Império (1822-1889) e no início dos anos 60 –, e tentaram repaginá-la, apresentando-a como a mais perfeita expressão do regime democrático, capaz de produzir uma revolução nos nossos costumes pouco republicanos. Talvez desavisados dessas virtudes, os eleitores preferiram não arriscar e confirmaram o presidencialismo no plebiscito de 21 de abril de 1993. Na era Lula, depois da sucessão de escândalos que pouco afetou a popularidade presidencial, o tema da reforma política volta a agitar as cabeças coroadas do Congresso e dos partidos. E, entre as medidas pensadas para melhorar o quadro partidário, duas vêm causando polêmica: uma, imediata, a “cláusula de barreira”, para eliminar as legendas de aluguel (siglas sem programa partidário que se prestam a acomodar interesses diversos); outra, no horizonte das possibilidades, o voto distrital, para estreitar a relação do eleitor com seu representante.

A cláusula de barreira impõe, já nestas eleições, a necessidade de um partido conquistar um mínimo de 5% dos votos nacionais e 2% em pelo menos nove Estados nas eleições para a Câmara dos Deputados. Se não conseguirem atingir esses índices, legendas históricas como o PV, PPS, PCdoB e até o recém-fundado PSOL, da senadora Heloísa Helena, estão ameaçadas de ficar sem recursos do fundo partidário, sem participação no colégio de líderes – que define a pauta da votação no Congresso – e com tempo exíguo na propaganda eleitoral gratuita. O resultado será uma asfixia que, mais do que extinguir as siglas picaretas, pode acabar também com esses pequenos partidos ideológicos, estreitando o espectro político do País. Será esse um preço que teremos que pagar para que o Brasil tenha instituições mais representativas?

Para o sociólogo Fábio Wanderley Reis, professor da UFMG, é preciso encontrar o equilíbrio entre a representatividade e a eficiência. “Temos que formar governos que possam atuar sem depender de barganhas miúdas e permanentes, que acabam gerando a necessidade de ‘governar com o atraso’, como Fernando Henrique Cardoso andou dizendo.” Ele acredita que o exagero ao princípio de representatividade democrática acarreta “uma proliferação indefinida de partidos, esquecendo que, além de ser capazes de vocalizar certos interesses, os partidos têm também de ser capazes de agregar interesses”.

Cobertura deficiente

Oliveiros S. Ferreira, professor de Ciência Política na PUC-SP e USP, aponta problemas não na lei em si, mas no tratamento que a mídia dispensa às atividades dos congressistas. “Se a imprensa tivesse outro comportamento com relação ao Legislativo, cobrindo de fato suas atividades e destacando o serviço dos bons parlamentares, a cláusula de barreira apenas reforçaria os partidos, ainda que pequenos”, pondera. Para ilustrar sua tese, Oliveiros lembra que “a divulgação que o pequeno PT teve pela imprensa foi o que permitiu seu crescimento”. Como a mídia não cobre o Legislativo, a cláusula realmente poderá impedir que os pequenos cresçam, diz ele. “É preciso encontrar, todavia, a maneira de impedir que os pequenos vendam seus espaços, como fazem hoje”, completa Oliveiros.

Apesar de pertencer a um partido – o Partido Verde – que provavelmente não ultrapassará a cláusula de barreira, o deputado Fernando Gabeira (RJ) não é um crítico radical da regra. “A verdade é que houve um tempo razoável para os partidos se adaptarem a ela; agora, o que resta aos partidos é avaliar por que não conseguiram”, analisa. Para Gabeira, a cláusula de barreira tem um lado saudável de enxugar o caótico quadro partidário brasileiro e ajudar a organizá-lo. “Estamos nos esforçando para ultrapassar a cláusula e o PV cogita entrar na Justiça, mas eu, pessoalmente, não tenho grandes resistências”, diz.

Mais polêmica ainda é a proposta de adoção do sistema de voto distrital, ultimamente defendida com ardor pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O sistema brasileiro para eleição de deputado é o proporcional, pelo qual os partidos recebem cadeiras proporcionais à votação conquistada nos Estados. No voto distrital, os Estados são divididos em distritos e o partido que ganhar em um deles leva todas as cadeiras em disputa, deixando os demais sem representação parlamentar alguma. Esse sistema é adotado pelos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e França. A Alemanha adota o voto distrital misto, em que os eleitores, além do deputado distrital, também votam em listas elaboradas pelos partidos. O problema desse sistema é que ele distorce a representação popular. Um exemplo sempre lembrado é o das eleições de 1993 no Canadá, nas quais o partido que teve mais votos (16%) elegeu dois deputados, enquanto o partido
menos votado (7%) elegeu nove.

Representação versus eficiência

O cientista político Marcus Figueiredo, do Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj), considera o sistema proporcional aberto existente no Brasil como o mais democrático para eleger deputados. Ele é contra o sistema distrital por este concentrar excessivamente os votos em dois ou três partidos e não acha necessário adotar mecanismos como esse para dar mais poder aos partidos na formação de maiorias parlamentares. A governabilidade, segundo ele, depende de acordo entre os partidos, como em qualquer país democrático. “Quando não há acordo, não há governabilidade, seja que sistema de governo for”, diz. Defensora no passado do sistema proporcional, a cientista política Lucia Hippolito jogou a toalha diante da distância cada vez maior entre o eleitor que escolhe um candidato que nunca viu e o eleito que não se sente na obrigação de prestar contas. “O sistema ideal é o distrital puro, em que todo eleito mora perto do eleitor e pode ser cobrado a todo momento”, defende. Mas ela teme que, caso seja adotado o voto distrital, os parlamentares caiam na tentação de aumentar o número de cadeiras. “Nos EUA, os deputados não passam de 435. Na antiga União Soviética, aumentaram as cadeiras até chegar a dois mil”, diz.

Fica claro que, se a reforma política é necessária para melhorar as instituições, o debate sobre suas implicações precisa ser aprofundado, sem ligeireza. Caso contrário, será difícil dissipar a impressão de que as elites políticas estão apenas seguindo a máxima de Tancredi, personagem de Tomaso di Lampedusa em O leopardo: “É preciso que tudo mude para que tudo permaneça como está.”