Terri Schiavo, 41 anos, que há 15 estava em estado vegetativo e cuja tragédia polarizou a opinião pública americana, morreu na quinta-feira 31, num hospital da Flórida. Sua condição decorreu de parada cardíaca momentânea, que cortou o fluxo de oxigênio para o cérebro, causando danos irreversíveis. Desde 1990, a vítima estava inconsciente. Ela permaneceu viva durante 13 dias depois de ter sido privada do tubo de nutrição, retirado a pedido do marido, Michael Schiavo, escudado em ordem judicial. A justificativa para essa eutanásia passiva foi o suposto desejo expresso pela mulher, antes de entrar em coma, de não sobreviver à custa de aparelhos. Robert e Mary Schindler, os pais de Terri, tentaram até as últimas horas injunções legais para reinstaurar a alimentação da filha. Numa escalada que galgou todos os degraus da Justiça americana – chegando à Suprema Corte dos Estados Unidos, que se recusou a ouvir o caso –, a batalha legal entre os Schindler e Michael durou 12 anos. Envolveu não apenas o Poder Judiciário como o Legislativo e o Executivo, além da mídia, grupos religiosos e defensores dos direitos civis.

Fisicamente, Terri pode estar morta, mas seu caso continuará palpitando e não será enterrado tão cedo. Partindo de uma questão fundamentalmente privada, a decisão de facilitar a morte de um indivíduo entrou no foro público de modo indelével nos Estados Unidos. Desde janeiro deste ano, circulava entre a liderança e militantes do Partido Republicano um memorando – supostamente idealizado por Karl Rove, o marqueteiro político do presidente George W. Bush – incentivando o apoio à causa dos Schindler. “O texto, a que tive acesso, grifa a frase: ‘Esta é uma causa que interessa imensamente ao Partido’”, diz o deputado democrata nova-iorquino Charles Rangel. A instrução, pelo que se veria nos meses seguintes, seria seguida como manobra de guerra. Antes das eleições presidenciais de 2004, Jeb Bush, o governador da Flórida, interveio a favor da manutenção do aparato de suporte à vida de Terri. Depois de uma longa batalha judicial, a Justiça autorizou Michael Schiavo a pedir a retirada do tubo de nutrição da paciente, no último dia 18.

Dois dias depois, numa sessão extraordinária do Congresso americano, aprovou-se uma medida que jogava às cortes federais a última decisão sobre o caso. O presidente George W. Bush interrompeu seu retiro no Texas, voltando a Washington apenas para assinar a validade da manobra. Não adiantou nada, pois os juízes da instância superior mantiveram o veredicto de seus colegas estaduais. Fizeram mais: recriminaram os políticos por interferirem não apenas com uma decisão do Poder Judiciário, mas também por atropelarem a autonomia estadual prevista na Constituição. Washington parece que se esqueceu que a nação é composta de uma união de Estados. Bastaria olhar o nome do país para lhes revigorar a memória. “Toda esta movimentação política republicana é uma hipocrisia suprema. O Partido Republicano gosta de posar como guardião dos direitos de cada Estado e apóia até medidas regionais que vão de encontro à Constituição que dá corpo à União”, diz Arnold Rich, analista político ligado ao Partido Democrata. “Isso, é claro, quando lhes convém. O caso Terri mostra que nem sempre a autonomia estadual é bem-vista pelos republicanos”, diz Rich.

Esta não é a primeira vez que os
republicanos passam por cima das decisões estaduais em favor do centralismo. Mas os democratas, que apóiam a supremacia da União, também partem para a estadualização, dependendo de seu interesse imediato.
O caso Terri, em que a soberania das cortes da Flórida foi tomada como bandeira democrata, prova esta ambiguidade.

Os fatos parecem confirmar o império da hipocrisia nesta polêmica de vida e morte. O líder republicano na Câmara, Tom DeLay, um dos comandantes das manobras republicanas para aprovar a medida especial de federalização do imbróglio, acusou de terrorismo o procedimento médico da retirada do tubo de nutrição. Esquecia-se naquele momento do próprio histórico de vida: quando seu pai estava em estado de coma, ele autorizou a retirada dos aparelhos que o mantinham vivo.

Entre os americanos, porém, não há confusão sobre o caso Terri. Numa
pesquisa da revista Time, apenas 35% dos cidadãos discordam da remoção do tubo de nutrição da paciente. Outros 54% acham que a família Schindler não tinha direito de decisão na questão. E 69% disseram que, se estivessem em estado vegetativo, também gostariam que seus guardiões desativassem o suporte de sobrevivência. E mais: provando que nem sempre o mago Karl Rove acerta em seus feitiços marqueteiros, 75% da população desaprova a intervenção do Congresso e 70% também acha que o presidente não deveria ter se metido na questão. O nível de popularidade de Bush depois da tragédia de Terri caiu para 47%, um dos patamares mais baixos de seu governo.