"Troquei de vôo com minha mulher"
"Eu entendo o amor incondicional que o cantor Roberto Carlos tanto demonstrou por Maria Rita", diz Ildercler Ponce de Leão, empresário amazonense de 42 anos. As semelhanças com o Rei, que perdeu a mulher vítima de câncer, vão além. Ele escreveu inúmeras canções românticas para a mulher, Jamille. E, assim como Roberto, uma fatalidade transformou em eterno seu amor pela garota de Fortaleza que ele pediu em casamento por telefone, sem nunca terem se encontrado. O conto de fadas começou quando Ponce atendeu a um favor de um amigo e hospedou um casal cearense em Manaus. Surgiu assim a amizade com Gisele, irmã mais velha de Jamille. Quando ligava para conversar com a nova amiga, era a caçula, com 14 anos, quem atendia o telefone. Três anos depois, o bate-papo entre desconhecidos transformou-se em profundas conversas interurbanas. Aos 17 anos, ela enfrentou o pai, casou e mudou para Manaus. Em 19 de outubro de 2005, dia que completava 20 anos, ganhou de presente o filho, Levi.

Foi com o bebê de um ano e oito meses no colo que Jamille perdeu a vida no vôo JJ 3054. O marido testemunhou cada segundo do acidente que encerrou tragicamente as férias da família. Os Ponce de Leão foram convidados para um aniversário na Serra Gaúcha, onde passaram dez dias. Ponce transferiu para a mulher e o filho a passagem que havia comprado da TAM e embarcou em outra companhia. "Trocamos de vôo", lamenta. Ambos os vôos faziam escala em Congonhas. Quando tentava acomodar a bagagem de mão com a comissária que estava em frente à porta ainda aberta do avião da Gol parado em Congonhas, ele viu a tentativa frustrada de aterrissagem do Airbus da TAM e a explosão. "Pela alta velocidade, achei que o avião estivesse decolando." Longos minutos depois, soube que a aeronave acidentada vinha de Porto Alegre. "Comecei a fazer os cálculos de que horas eles chegariam a São Paulo. Sabia que poderia ser o avião deles." O aeroporto foi fechado e ele desceu do avião direto para o Salão de Autoridades, onde passou a funcionar o quartel-general da crise. Começava uma dramática espera. Em meio à dor, Ponce dizia que preferia estar no avião em chamas junto das duas pessoas que mais amava na vida.

Uma cientista em ascensão
Aos 28 anos, Lina Barbosa Cassol acabara de ser escolhida pela Sociedade Americana de Oncologia Clínica uma das 20 profissionais mais destacadas em sua especialidade entre médicos de países em desenvolvimento. A oncologista gaúcha sonhava em descobrir a cura para o câncer. Viajou a São Paulo para dar entrada na papelada para o doutorado que começaria em 10 de setembro na Universidade de Michigan (EUA). Antes de embarcar no avião da TAM, ela ligou para o noivo, André Berger, para avisar que estava tudo bem. André viu o acidente pela tevê e ligou para a sogra. "Na hora só escutei e fiquei quieta. Ainda tinha esperança de que a minha filha não estivesse naquele vôo", relata Glória Cassol. André, que também é médico, embarcou para São Paulo com Daniel, irmão de Lina, assim que confirmou o nome da noiva na lista das vítimas. Na quinta-feira 19, ele identificou a aliança de Lina entre os pertences das vítimas no IML. O elo entre o casal ajudou a confirmar a tragédia.

Espera no posto
Na segunda-feira 16, o técnico em eletrônica, Marcelo Stelzer, 39 anos, deu um beijo na mãe antes de sair de casa, no Bairro do Limão, em São Paulo, e voou para Porto Alegre. "Ele fazia esse caminho duas a três vezes por semana. Trabalhava tanto que nem tinha tempo de sentir medo de avião", conta o tio, Vicente Carvalho.

A volta estava programada para às 19 horas da terça, num vôo da TAM com chegada em Guarulhos, mas Marcelo terminou mais cedo e, com planos de fazer uma surpresa para a noiva, antecipou a volta para o fatídico JJ 3054. "Ele avisou o pai que ia chegar em Congonhas e pediu para a mãe fazer uma sopinha para o jantar, pois estava mal do estômago", relata Carvalho. Por volta das 17h30, a mãe, Neide, saiu para comprar o frango para a sopa, enquanto o pai, Renato, foi buscar o filho no aeroporto. Como sempre fazia, estacionou no posto de gasolina ao lado do prédio da TAM Express, na avenida Washigton Luiz e saiu do carro para esperar. Quando fechava a porta, olhou para o lado e viu o Airbus fora de rota planar sobre a avenida e espatifar-se no edifício. Na hora teve certeza de que era o avião do filho. Renato desmaiou e foi socorrido por pessoas que passavam no local.O celular tocava e ele atendia, mas grogue, não conseguia falar. Foi ajudado por estranhos a entrar no táxi e voltar para casa. A família ainda não teve ânimo para saber o que aconteceu com o carro. "Ficou lá, assim como a sopa, que agora está cheia de lágrimas", diz Carvalho.

"Acabaram com a minha família"
Márcio de Andrade, 36 anos, embarcou para Porto Alegre há 15 dias para uma importante reunião com Roberto Assis, irmão de Ronaldinho Gaúcho. Agente da Fifa, Márcio cuidava da imagem do craque do Barcelona e da Seleção Brasileira na Ásia. Com saudade da família, o executivo chamou a mulher, Melissa, 31 anos, e Alanis, que completou dois anos dia 10 de julho, para participar de uma confraternização no sítio do jogador gaúcho no fim de semana. "Eles não se separavam nunca", conta Mário Ura, tio de Melissa. Para as férias, ela levou o irmão André Dona, 25 anos – que passara no concurso da OAB dez dias antes do acidente. André convidou a noiva, Vanila Pontes, 22 anos, que desistiu da viagem na última hora. Com motivos para comemorar, André e os parentes seguiram para descansar em Gramado, na Serra Gaúcha, e voltavam para casa no Airbus da TAM. "Esse país conseguiu acabar com minha família. Quem é o responsável?", indaga Ura, que vai velar quatro familiares.

"Cuida da minha filha"
Úrsula Grunwald ainda ligava para o celular da filha, Silvia, para ouvir sua voz. O último telefonema entre elas foi na noite da segunda-feira 16. "Silvia disse que ia viajar na terça e pediu para eu ficar com a filhinha dela. Disse que de agora em diante queria que eu ficasse mais com minha neta." Valentina, quatro anos, havia almoçado com a mãe na Puras, empresa onde Silvia trabalhava há 12 anos. Após levar a filha para a escola, Silvia foi conduzida pelo marido, Fabrício Paim, até o aeroporto Salgado Filho, para pegar o vôo com destino a Belo Horizonte e conexão em Congonhas. "Cheguei às 19h10 em casa, liguei a TV e vi que havia acontecido o acidente. Liguei para o meu genro e pedi para ele ir ao aeroporto ver se não a encontrava lá, pois, com os atrasos constantes, ela poderia ter embarcado em outro vôo. Era a minha esperança." Mas a busca foi em vão. Silvia era uma das 186 pessoas que embarcaram no JJ 3054. "Desde aquela hora eu não parei mais de chorar", diz Úrsula. "Silvia era só brilho. Era o esteio da casa."

Foto momentos antes do embarque
Suas idades somavam 394 anos. Adelaide Moura (75), Suely Fonseca, (75), Mery Garsk Vieira (77), Elcita da Silva Ramos (85) e Nelly Elly Priebe (82) faziam parte do Sindicato dos Aposentados e Pensionistas do Rio Grande do Sul (Sindpers). Posaram para a foto abaixo antes do embarque do vôo JJ 3054, ao lado de Catilene Maria Oliveira, 35 anos. Elas integravam o movimento Tricô dos Precatórios, que faria um protesto em frente à Federação das Indústrias de São Paulo na manhã da quarta-feira 18. Fazia tempo que a aposentada Nelly Priebe não ia para São Paulo. "Ia aproveitar para visitar o neto Gustavo, que mora em Campinas. Estava superfeliz e fazendo mil planos", recorda-se Viviane Maia de Biagio, namorada de Guilherme, outro neto de Nelly.

Fundadora do Sinapers, ela e as amigas se organizaram para brigar pelos direitos que deveriam ter sido incorporados aos salários e aposentadorias. "Entraram com processo e ganharam em todas as instâncias, mas o governo nunca pagou. São mais de 17 anos", explica Miriam Priebe, nora de Nelly. A conta a ser paga aos pensionistas e aposentados chega aos R$ 3 bilhões somente no Rio Grande do Sul. Elas tricotavam enquanto não recebiam e o tricô já estava em 180 metros quando foi consumido pelas labaredas do Airbus. Entre os planos de Nelly para o futuro, duas coisas se sobressaltavam: a formatura do neto e o recebimento do dinheiro dos precatórios. "Ela disse que não iria morrer antes de me ver formado. Também sempre dizia que quando o dinheiro saísse, iria comprar uma casa na praia, em Santa Catarina", conta Guilherme, 24 anos, que só deve se formar em biologia em meados de 2008. Ele se orgulha do exemplo deixado pela avó octogenária. "Em vez de ficar definhando dentro de um apartamento, ela morreu indo atrás de justiça."

"Papai, eu te amo muito"
A alegria de Rebeca Haddad só seria maior se o time do Grêmio tivesse embarcado no mesmo vôo com destino a São Paulo. Mas os jogadores do time de coração da estudante foram deslocados para outra aeronave. Eles fariam uma conexão na capital paulista antes de seguir para Goiânia, onde jogaram na quinta-feira 19. A gaúcha de 14 anos estava animada com a primeira temporada longe dos pais, tão marcante na adolescência. Ela viajava a São Paulo acompanhada apenas da melhor amiga da escola, Thaís Scott. A dupla inseparável passaria férias na casa do avô de Thaís, em São Paulo. "Ela estava muito feliz e me ligou antes de embarcar para agradecer o presente que lhe dei: ‘Papai, eu te amo muito. Obrigada por ter me dado esta viagem’" conta o pai, Christopher Haddad, consultor de empresas e ex-comissário de bordo da Vasp. Torcedor do Internacional, Haddad não conseguiu fazer com que a filha mais velha seguisse o mesmo caminho.

"Sonhei que o avião explodia"
Duas semanas antes de embarcar no Airbus 320 da TAM, o analista de sistemas Ésio Cerqueira de Freitas, 24 anos, teve um pesadelo digno de tempos de apagão aéreo. "Ju, eu sonhei que tinha ido viajar e que o avião tinha explodido", disse ele à mulher, Juliana Freitas, 21 anos, com quem é casado há dois anos. "E se acontecer quando eu for para Porto Alegre?" Juliana nem quis pensar na hipótese: "Pára com isso, foi só um sonho, não é nada", respondeu. O pesadelo se realizou. A premonição era contada entre lágrimas pela tia de Ésio, Luzimar Freitas Novaes, na porta do IML de São Paulo, onde levou as radiografias dentárias do sobrinho para a difícil identificação do corpo.

No dia do aniversário de namoro
Eram 16h16, quando Carla Guimarães foi acordada pelo toque do celular. Do outro lado da linha, seu noivo, Janus Lucas Leite de Silva, ligava para acertar os detalhes do jantar de comemoração dos dois anos de relacionamento naquela noite. "Um beijo, te amo", disse Janus, encerrando a terceira ligação do dia entre o casal. Ele se dirigia ao aeroporto Salgado Filho para iniciar a viagem de volta para Salvador, onde mora. Faria escala em São Paulo e sua chegada à Bahia estava prevista para às 22h. Por volta das 19h, Carla ligou a televisão e viu o plantão anunciar o acidente em Congonhas. "Na hora, eu soube que ele estava lá. Senti que meu amor tinha ido quando vi a imagem da cauda do avião da TAM." Carla não esperou a confirmação do número do vôo nem do nome dos passageiros. Ligou para os pais e para os sogros e mergulhou em um pesadelo. "Na minha frente só vi saudade e solidão. Ele fazia tudo por mim. Não me deixava faltar nada. Nunca saiu de casa sem me dar um beijo", recorda-se, com a dor de quem viu ser sepultado o sonho de subir ao altar em maio de 2008 com o administrador de empresas de 27 anos, funcionário da Braskem em Camaçari, região metropolitana de Salvador."Íamos fechar o contrato da compra do nosso novo apartamento na próxima semana", conta Carla, que dividia com Janus um imóvel de dois quartos. "Queríamos nos mudar para um mais amplo para ter nosso primeiro filho."