Se uma mentira contada mil vezes se torna verdade, uma piada repetida outras mil não tem graça alguma. Há pouco mais de um ano, quando anunciou a intenção de concorrer à Presidência dos Estados Unidos, Donald Trump era apenas uma figura exótica que dizia insanidades (“vou ganhar a eleição porque tenho o maior pênis entre os postulantes ao cargo”, ou “sou tão rico que posso jogar 1 milhão de dólares por dia no lixo”) para uma população cansada dos velhos políticos. Naquele começo, ninguém poderia levar a sério alguém com um discurso tão estúpido (“ele é só um palhaço”, desdenhou Hillary Clinton, sua rival entre os democratas). No decorrer da disputa para a definição do candidato do Partido Republicano, Trump não suavizou o falatório jocoso e, mesmo assim, deixou para trás nomes como Marco Rubio e Ted Cruz, aparentemente mais sólidos. Na semana passada, com a desistência do último rival, o governador de Ohio, John Kasich, Trump passou a ser o virtual candidato republicano à Casa Branca. Ele riu por último, apesar das piadas infames.

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A eleição presidencial nos Estados Unidos não diz respeito apenas aos americanos, e por um motivo óbvio: o chefe da maior potência do planeta interfere nos desígnios globais. Uma decisão dele tem munição suficiente para incitar conflitos armados no Oriente Médio, arrasar economias emergentes, deflagrar problemas diplomáticos na Europa. Com a chance real de Trump se tornar presidente – nunca um sujeito como ele chegou tão perto disso –, o mundo começa a se perguntar quais são os riscos embutidos em sua impressionante escalada. Não são poucos. “Donald Trump baseia os planos para a política externa em seu próprio poder”, diz Phyllis Bennis, diretora do Instituto para Estudos Políticos de Washington e analista de Oriente Médio. “Ele pensa que, como líder dos Estados Unidos, poderia criar um conjunto de políticas que não reconhecem o direito internacional, os direitos humanos e a ONU.”

A linha de raciocínio de Phyllis reforça um traço marcante da personalidade de Trump: a egolatria. Como é comum entre empreendedores que, como ele, são bem-sucedidos (filho de um construtor, este tubarão do mundo dos negócios erigiu uma fortuna de US$ 5 bilhões ao apostar em atividades tão diversas quanto cassinos, torres de edifícios e concursos de miss), Trump acha que sempre tem razão e raramente dá ouvidos a opiniões divergentes. Por mais indignação que suas propostas possam ter despertado durante a campanha, ele as mantém mesmo sob intenso tiroteio. Inclusive de seus próprios pares. “Suas posições numa série de temas, da saúde à política externa, passando pelo aborto, vão contra a ortodoxia do partido”, diz Mark Kennedy, ex-deputado republicano e diretor da Escola de Gestão Política da Universidade George Washington. “Muitos líderes pensam que ele usa o Partido Republicano apenas para avançar em sua própria agenda.”

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Que agenda seria essa? Ao que parece, e tudo em Trump é tão incerto quanto a origem do implante capilar que ele fez há alguns anos, ela está centrada em quatro pilares: combate aos imigrantes, protecionismo comercial, corte de impostos e algo vago que se poderia chamar de “belicismo de conveniência”. Começando por este último: em vários debates, Trump disse que não se importaria em bombardear áreas habitadas por pessoas inocentes, desde que isso fosse feito para o “bem dos Estados Unidos.” Não é difícil calcular a instabilidade geopolítica que ações como essas poderiam desencadear. “É muito improvável que as estratégias que ele propõe, que incluem o bombardeio indiscriminado de civis num esforço para expulsar o Estado Islâmico de áreas urbanas, façam mais do que encorajar outras pessoas a apoiar o movimento extremista”, diz o ex-deputado Mark Kennedy.

A cantilena mais batida por Trump se refere aos imigrantes ilegais. Ele defende a expulsão imediata de todos eles, o que corresponde a 11 milhões de pessoas – ou uma Grécia inteira. Trump também prega a construção de um muro separando Estados Unidos e México de ponta a ponta, sendo que o valor deveria ser “custeado integralmente pelo governo mexicano.” Mesmo disparatado, o discurso agrada a uma parcela considerável dos americanos. Uma análise mais atenta dos possíveis impactos da medida revela por que ela é inviável. Estima-se que a iniciativa custaria US$ 600 bilhões aos cofres americanos e levaria 20 anos para ser concluída. Mais: expulsar imigrantes devastaria a agricultura americana, já que uma parcela expressiva de sua mão-de-obra é formada por imigrantes ilegais. Se Trump realmente se livrasse de todos eles, o país enfrentaria desabastecimento e queda nas exportações.

PROTESTO Manifestantes chamam Trump de racista: ele fala mal de negros, muçulmanos e latinos
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Manifestantes chamam Trump de racista: ele fala mal de negros, muçulmanos e latinos (Crédito:Don Emmert/AFP PAhoto)

Embora seja um especialista em fazer dinheiro, Trump não parece compreender a lógica econômica da máquina pública. Sua proposta fiscal, baseada no corte progressivo de impostos, elevaria a dívida do governo federal em US$ 11,2 trilhões na próxima década. A estimativa é do insuspeito Tax Policy Center. Em um artigo publicado na semana passada pelo jornal O Estado de S.Paulo, Ilan Goldfajn, economista-chefe e sócio do Itaú Unibanco, escreveu que, no curto prazo, o resultado do modelo Trump seria a redução do investimento privado. No médio prazo, limitaria o crescimento do PIB americano, arrastando para o precipício várias outras nações. No campo econômico, Trump é um anacrônico. O nacionalismo que ele prega levaria os Estados Unidos a um isolamento que se contrapõe à própria formação do capitalismo americano, baseado na intensa troca comercial entre os países mais prósperos. Há alguns dias, ele chamou a China, atualmente o principal parceiro comercial dos Estados Unidos, de “entreposto pirata”.

O discurso de Trump surfa na onda da insatisfação de milhões de americanos que, nas últimas décadas, não se beneficiaram do forte crescimento do PIB do país. Essa turma, especialmente os de baixa escolaridade, sofre com um sistema de saúde deficiente e com a falta de perspectiva das regiões mais pobres. Ele também seduz os ultra conservadores, que enxergam nos ataques terroristas um motivo para manifestar antigos preconceitos. “Trump atrai eleitores que desejam um ‘outsider’ político porque eles sentem que, depois de anos de rancor partidário, Washington não funciona mais para eles”, afirma o ex-deputado republicano Mark Kennedy. “As pessoas estão zangadas porque elas sentem que os políticos não as estão ouvindo.” Resta saber se o discurso é verdadeiro ou se foi irradiado apenas para fisgar eleitores. “Ele atacou nos últimos meses os muçulmanos, os chineses e os latinos”, diz o cientista político Leonardo Paz, professor do Ibmec-RJ. “É apenas o que muitos americanos gostariam de ouvir.” Se tudo o que Trump disse nos últimos meses foi apenas uma grande piada, ela é de mau gosto.

A impopular Hillary

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Pela primeira vez em muitos anos, a eleição americana deverá ser decidida entre oponentes que não são bem vistos por uma parcela significativa da população. A democrata Hillary Clinton, que deve ser a adversária de Trump na corrida presidencial, tem fama de autoritária e patina em temas caros à sociedade americana, como desigualdade social e combate ao terrorismo. Para muitos especialistas, a face impopular de Hillary é o que dá alguma chance de o republicano ser eleito. “Hillary tentará convencer os indecisos de que ela é uma aposta mais segura do que Trump, mas a verdade é que a maioria dos americanos preferiria não ver nenhum deles na Casa Branca,”, diz Henry Olsen, analista do Centro de Ética e Política Pública, de Washington.

Com reportagem de Helena Borges